"Quem compra uma t-shirt com o Che é fixe"

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Nunca usou t-shirts com Che. Mas hoje veste a camisola. É o intérprete´de "O Argentino" (esta semana nas salas) e "Guerrilha" (daqui a duas semanas), as duas partes do filme de Soderbergh.

Benicio del Toro não usava t-shirts com o Che estampado. Em Porto Rico, onde nasceu há 42 anos, "não havia t-shirts; não havia livros de História que mencionassem Che Guevara em Porto Rico, que é parte dos EUA". E compreende-se que um guerrilheiro de arma em punho a fazer a revolução não era uma imagem querida naqueles tempos americanos, continuando aliás a ser uma imagem com potencial de medo, hoje, para o americano médio (razão pela qual nenhum estúdio americano se quis envolver com "Che", a biografia do revolucionário Ernesto Guevara de la Serna, filmada por Steven Soderbergh).


Benicio del Toro pouco sabia de Che Guevara, aceitava até o coro de que estava li um "bad guy" - até que um dia viu uma foto com aquele sorriso caloroso, e pensou que tinha de haver alguma coisa errada nessa ideia de que Che era um "bad guy".
Hoje veste a camisola: é o homem de "Che", porque é o produtor - foi ele que, em 1999, durante a rodagem de "Tráfico", propôs o filme a Soderbergh - e o intérprete, premiado no último Festival de Cannes.
Duas partes, quatro horas de duração: "O Argentino", que esta semana estreia, segue um médico argentino, Ernesto Guevara de la Serna, a partir de 1956 (dia 22 de Novembro) quando ele integra o contingente de 80 rebeldes liderado por Fidel Castro, todos em rota de colisão contra o regime de Fulgencio Batista. Dois anos passados na floresta da Sierra Maestra, o médico transforma-se em "Che", herói, e os revolucionários tomam a vila de Santa Clara, episódios decisivo para a conquista final de Havana.

Elipse - e um intervalo de duas semanas, porque só daqui a duas semanas chega às salas portuguesas a segunda parte, "Guerrilha" - e encontramos Che no auge do poder. E desistindo dele. Desaparecendo. Reaparecendo na Bolívia, rodeado com um pequeno grupo de cubanos e bolivianos, determinados a iniciar a Grande Revolução Latino-Americana. E morrendo, no dia 9 de Outubro de 1967.
São dois filmes-espelho, revolução e fracasso. Condenados a confundir expectativas: nada de cenas espectaculares, nem fulgor de épico, e falado em espanhol. O mais interessante é a forma como faz corpo com o ritmo de Che, o magnífico Benicio del Toro, aqui rodeado de um "cast" de ingleses, americanos, brasileiros, colombianos, cubanos e portugueses (Joaquim de Almeida como presidente da Bolívia).
Como se aborda um papel assim? Benicio responde: de olhos fechados, como numa oração.

Considera Ernesto "Che" Guevara de la Serna o papel mais difícil da sua carreira?

O mais difícil e o mais complexo: é um pensador e um homem de acção e isso é complicado. Em muitos filmes temos o tipo pensador e o tipo da acção. Che é tudo isso numa só pessoa.

Quando Steven Soderbergh o convenceu a fazer o papel disse logo "sim"?

Sim. E depois pensei: "ó merda, o que é que eu fiz!"

Disse "sim" por causa de Che ou por causa de Steven Soderbergh?

Pelos dois.

Teria feito o filme sem Steven Soderbergh?

Não. Penso que não. Espero que ele diga a mesma coisa acerca de mim...

Teve algum receio quando lhe disse que ia fazer um filme de quatro horas?

Foi uma decisão bizarra. Mas se ele disser: "Quero encontrar-me contigo na paragem de autocarro na quarta-feira, 3 de Outubro, às 17h15", vai estar lá. Soderbergh é esse tipo de pessoa e é uma das coisas que gosto nele.
Telefonou-me e disse: "Tenho de falar contigo". Pensei: "está bloqueado com o argumento, não sabe como resolver a situação" e fui até à casa dele. Ele disse: "quero fazer dois filmes". Foi tudo tão louco e bizarro que parecia, bem, certo.

Como é se aborda um papel como este?

De olhos fechados. É uma abordagem como muitas orações, acho. É difícil, não é fácil. Começa-se por ler o que ele escreveu - Che escreveu bastante e muito bem. Depois vamos até ao que outras pessoas disseram ou escreveram sobre ele.
Tivemos sorte pois encontrámos pessoas que o conheciam; a mulher dele, alguns membros da família, e pessoas que o conheceram em Cuba, e pessoas que o conheceram na Bolívia, encontrámo-nos com eles todos. Tivemos alguma sorte nesse aspecto e a partir daí começa-se a construir a personagem. Essa é a base.
Existem muitas imagens e fotografias de Che que também podem ajudar, e ainda excertos filmados: os discursos, para o ouvir falar. E depois constrói-se, fazemos a nossa própria personagem: descartamos tudo aquilo que aprendemos, se não o fizermos arriscamo-nos a ficar muito rígidos.
É difícil. Temos de "pintar" dentro das linhas. Não podemos imaginar.
Vi alguns filmes sobre Che. Não vi nada que as pessoas não tenham visto. A maior parte das coisas é o que está em documentários. O discurso nas Nações Unidas [em 1964 Che representou oficialmente Cuba nas ONU, em Nova Iorque, onde discursou] não existem completos em filme, há talvez um minuto ou dois com imagem, não há assim muito. Mas existe em áudio, o discurso todo. O que é óptimo.

Você queimou-se com cigarros em "Delírio em Las Vegas" [Terry Gilliam, 1998; interpreta Dr. Gonzo no filme que adapta a vida e obra de Hunter S. Thompson]. Até onde está disposto a ir por um papel?

Já não vou tão longe. Amadureci. Isso era uma sinal de imaturidade. Agora represento.

Alguma vez sentiu pressão em "Che", tipo "não lixes isto"?

É um filme difícil de fazer da forma que o fizemos: em castelhano, com pouco dinheiro, viajando através de cinco países. Quando encontrámos as pessoas que conheceram Che Guevara, havia muita paixão no ar e isso tocou-nos. Sabíamos que elas iam ver o filme, que o que todos esperavam era que eu desse o meu melhor. O Steven [Soderbergh] disse-me quando começámos: "É impossível fazer um filme sobre este tipo - vamos tentá-lo." Se é impossível então não há limites para quanto podemos tentar.

Isso libertou-o...

Sim. É o que isto é: é só a minha interpretação desta personagem histórica. Houve outros actores que o fizeram antes e decerto haverá outras interpretações de Che. Mas o que é curioso neste filme é o facto de termos encontrado pessoas que o conheceram pessoalmente. Esta é a diferença. Toda a pesquisa levou-nos a encontrar as pessoas que estiveram com ele na Bolívia e que ainda estão vivas. Respeitam o homem e não o querem transformar num deus. Ele é um homem. Mas eles gostariam de lá voltar e trazê-lo de volta.
Foi tudo muito rápido, muito exigente. Foram apenas 78, 79 dias de rodagem. Lembro-me de ter filmado uma cena, na segunda parte do filme, em que tinha de fazer um discurso com asma - fizemos isso num dia. Noutro filme, mesmo num filme rápido, teriam sido necessários três dias. Fizémo-lo num dia e quando acabámos, uma segunda-feira, eu achava que já era sexta-feira. Parecia que tinha passado uma semana inteira.
A única maneira de fazer este filme é da forma que o Steven fez. Ainda agora estaríamos na selva se eu tivesse algo a dizer sobre isso. Havia uma cena que eu não conseguia decidir como a fazer. Temos de tomar decisões - isso é também uma coisa muito à Che. Fazer algo, continuar, não voltar atrás. Fizemos o filme nesse espírito.

Antes do filme o que é que sabia sobre Che?

Não muito... Agora há a moda dos autocolantes e das t-shirts ... era uma coisa muito forte nos finais dos anos 60 inícios dos 70 e depois morreu e teve um ressurgimento nos anos 90. Mas quando eu estava a crescer em Porto Rico não havia t-shirts, não havia livros de História que mencionassem Che Guevara em Porto Rico, que é parte dos EUA. E quando fui para o liceu nos EUA ainda menos, portanto não sabia muito. Essa é uma das razões porque, quando nos dizem "não podes ir por aí" eu quero, facto, ir por ali.

Hoje qualquer miúdo de 14 anos tem Che na t-shirt. Seria um desses míúdos se as t-shirts existissem na altura?

Eu estava mais interessado nos The Who e nos The Clash. Os Clash são muito políticos. Mas as t-shirts não existiam quando eu era miúdo. Ainda sou um miúdo, porém. Penso que se estivesse a crescer quando as t-shirts apareceram, teria uma dessas t-shirts. Muitas pessoas que as usam compreendem a essência do sujeito, essa coisa de não nos vendermos. Isso é decididamente Che.
O que lhe posso dizer é que quem compra uma t-shirt com o Che é uma pessoa fixe. Segundo a minha experiência quando vejo alguém com uma t-shirt do Che é alguém com bom gosto.

Foi estimulante filmar em castelhano?

Sim. Mas foi difícil. Porque o meu castelhano parou quando eu tinha 13 anos. Che é um intelectual, e esse castelhano é muito elaborado.

Depois de ter interpretado Che filmou "Lobisomem"/ "The Wolf Man", de Joe Johnston...

Graças a Deus! Foi uma boa maneira de abandonar a personagem. Estava a fazer um filme histórico, estava de facto perto da verdade, dentro de certas linhas, é claro, e fui fazer o "Lobisomem" e pude imaginar o que quer que fosse, mudar o que quer que quisesse. Como é que Lobisomem anda? Eu posso decidir isso como quiser - com o Che, não. Tinha de pensar como é que ele andaria com asma. Não se pode inventar isso.

Lembra-se do momento em que descobriu que era bom naquilo que fazia?

Eu faço mesas, eu não olho para elas, eu só continuo a martelar. Não penso que seja melhor que ninguém, a sério. Quero dizer, sou melhor que o meu primo.

O que é que fez o Che tão especial?

Uma surpreendente quantidade de energia e desejo. Acreditava que podia mudar algo, que as pessoas podem mudar a História. É um produto dos anos 60, década em que parecia que isso era possível. Agora não é assim tão claro. Perseverança, moralidade, ser o mais fraco, lutar contra a injustiça, lutar pelos esquecidos, isso era o que o movia. Era como Jesus só que Jesus dava a outra face - o Che não. Mas o Che nunca aterrorizou as pessoas. Algumas pessoas têm-no acusado de ser um homem que estava só interessado no poder, mas se estivesse interessado no poder não teria ido para a Bolívia. Se ler os diários dele, há muitos momentos em que se percebe que ele podia ter tirado vantagem das situações, e não o fez. Ele estava em apuros na Bolívia, tudo estava a desmoronar-se e manteve-se firme. Era um homem de estatura moral. Manteve-se firme.

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