O futuro vai ser tão bom, não foi?

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No passado, o futuro éramos nós. Mas nós não colonizámos a lua, não estivemos em Marte e sobretudo não fomos felizes para sempre; um fracasso. Estamos ver o futuro a que não tivemos direito no 17º Curtas Vila do Conde.

The year is 2009.
Dantes o futuro falava assim connosco, no cinema. Tinha voz de homem e prometia-nos mundos e fundos: televisões com comandos à distância, carros com botões a mais e uma alavanca de mudanças a menos, telefones com aviso de chamadas em espera, cozinhas com um QI superior ao nosso (introduz-se um cartão numa ranhura, o ecrã faz uma simulação em segundos do aspecto que o prato vai ter, o frigorífico organiza-se para depositar os ingredientes na forma e, enquanto a mulher do futuro vai jogar ténis ou fazer mais umas compras, a cozinha do futuro faz aquilo para que lhe pagamos, em suaves prestações mensais) e o plástico, ah!, o plástico.

O ano é 2009 e não: o petróleo não durou para sempre, os robôs domésticos não "lavam a louça", não "cozinham as refeições elementares", não "limpam a casa", não "reparam a máquina de lavar a roupa de um dia para o outro" e, além de não nos avisarem em caso de incêndio também não "combatem o próprio incêndio", os passeio não passaram a ser elevados "para dar mais segurança aos peões, duplicando o espaço disponível", o jantar não está disponível em pequenas cápsulas "deliciosas", não há assim tantas auto-estradas suspensas "espectaculares" e sobretudo ainda não colonizámos a lua, ainda não fomos ver que tal se está em Marte e ainda não fomos felizes para sempre. Como futuro, o século XXI é um fracasso (e como passado também é possível que não venha a ser empolgante), mas teremos sempre o cinema: ficámos muito bem, nós (ou melhor: as pessoas que os "babyboomers" queriam ser quando fossem grandes), na fotografia que as gerações anteriores anteciparam em grandes narrativas sobre a conquista do espaço, pequenos filmes comerciais sobre "os carros de sonho do futuro" e outras aventuras caseiras ainda mais anónimas. 

Do futuro à paranóia

O futuro que não tivemos dava um parque temático, diz Miguel Dias, programador do Curtas Vila do Conde: é para lá que vamos num programa especial (dissemos especial, não espacial: ao contrário do que era suposto, a avaliar por estes filmes sobre o nosso século, os nossos carros ainda não voam) da 17ª edição do festival. "Back to the Future", como num filme dos anos 80? Também (faz parte da história do nosso futuro e está em "The History of the Future", de Reynold Reynolds, que passa quarta-feira, às 23h30), mas sobretudo "Back to the Future" como num filme dos anos 60. "O período áureo do futuro é o das décadas de 50 e 60. Temos filmes anteriores - o 'Viagem à Lua', do Méliès, que foi o primeiro filme de ficção científica da história do cinema, era inevitável - e filmes posteriores, alguns até já do sécuSlo XXI, como o 'Retropolis', mas o grosso do programa é composto por filmes daquela fase. É a época mais futurista do século XXI em termos de design - na arquitectura, na decoração de interiores, na indústria automóvel, no vestuário - e também a mais optimista em relação ao futuro, o que tem muito a ver com a euforia das conquistas científicas e do arranque da aventura espacial, mas também com o crescimento económico", sublinha Miguel Dias. Também havia paranóia nesse mundo pós-Hiroxima e pós-Nagasáqui - o holocausto nuclear, versão grande orçamento da Guerra Fria, é tema recorrente nas ficções, e mais ainda nos pesadelos, das décadas de 50 e 60 - e um terror perante a figura tão promissora quanto demoníaca do robô mas essa, continua o programador, não é a representação dominante. Comparados connosco, eles tinham a paranóia, mas também tinham a confiança: depois de terem piorado tão drasticamente (nos anos 30, com a Grande Depressão, e nos anos 40, com a Segunda Guerra Mundial), as coisas só podiam melhorar. Nós temos só a paranóia: "Hoje quando o cinema fala do futuro é sempre para dizer mal; temos visões muito apocalípticas do futuro. Catástrofes ecológicas, guerras religiosas, terrorismo. Se programássemos este ciclo daqui a umas décadas com filmes do nosso tempo, seria uma experiência muito mais deprimente".

Tendo em conta as expectativas que as gerações anteriores criaram em relação ao desempenho do século XXI - "No futuro vamos comer caviar e telefonar a uma 'star', diz o "jingle" final de "Century 21st Calling" (1963), encomenda da companhia de telefones AT & T que passa na segunda-feira às 18h30 -, a vista que temos daqui é algo desoladora.
"O subtítulo do programa 'Back to the Future' é 'O futuro já não é o que era' precisamente porque ao olharmos para estes filmes constatamos que há uma série de promessas que nunca aconteceram - essa 'décalage' entre o que se imaginava que o futuro ia ser e aquilo que o futuro foi realmente foi um dos aspectos que mais nos entusiasmaram. Naquela altura toda a gente achava que no século XXI já ia haver colónias na lua e já teríamos ido a Marte - parecia óbvio, a avaliar pela rapidez com que a coisa estava a desenvolver-se. Não aconteceram essas mas aconteceram outras coisas que ninguém imaginava: as telecomunicações foram mais longe do que qualquer filme de ficção científica podia prever", diz Miguel Dias. É um facto: nem o visionário filme da AT & T antecipa esta coisa furiosamente futurista de haver mais telemóveis do que americanos nos EUA. Modéstia à parte, houve coisas em que fomos os maiores.

Também é um facto que as representações do futuro dizem sempre mais acerca da era em que são produzidas do que da era que pretendem antecipar e é por isso que estes filmes em que a General Motors achava que ainda estar viva no século XXI são tão difíceis de ver, agora que Detroit é uma cidade-fantasma e que o capitalismo americano, tal como o futuro, já não é o que era. "Tenho o pressentimento de que algumas coisas não vão mudar", diz o narrador de "Design for Dreaming", de 1965 (quinta, 0h30), antes de apresentar "os carros de sonho de amanhã" - Cadillacs, Buicks, Pontiacs. Mudou tudo demasiado radicalmente: para nós, que sobrevivemos ao fim de tanta coisa (sobretudo ao fim da euforia de uma animação como "Destination Earth", filme de 1956 que Carl Urbano realizou para a American Petroleum Association e em que um extraterrestre descobre o sistema perfeito: uma fonte de energia "inesgotável" e o maravilhoso sistema capitalista que a põe à disposição de toda a gente, permitindo messianicamente que centenas de companhias petrolíferas compitam entre si), este futuro já é passado. Por incrível que pareça - pelo menos para a cabeça das gerações que cresceram a achar que o mundo ia acabar no ano 2000 -, já chegámos a 2008, a data em que o futuro começa em "Wandering through the Future", instalação que a holandesa Marjolijn Dijkman criou para a Bienal de Sharjah de 2007 e que vai estar no Teatro Municipal já a partir de amanhã.

The year is 2009 ("to survive it he'll have to move a lot faster", anuncia o "trailer" de "Freejack", filme de 1992 com Emilio Estevez, Mick Jagger e Rene Russo), e parte do futuro já é passado nesta cronologia que recapitula os anos que ainda não vivemos na realidade mas já vivemos no cinema, do 2008 de "O Dia depois de Amanhã" ao 802.701 de "A Máquina do Tempo", passando pelo 2026 de "Metrópolis", pelo 10.191 de "Dune" e pelo 40.000 de "Barbarella". O futuro? Já estivemos lá e sobrevivemos para contar - às utopias e às distopias.

Além da ficção científica

A viagem no tempo de "Wandering through the Future" confirma as suspeitas de Miguel Dias: "O que mais nos espanta, quando olhamos para a evolução das últimas décadas, é que o medo se torna cada vez mais dominante. [As produções mais recentes] fazem tudo para garantir que os espectadores tenham sempre presente nas suas cabeças a ideia de que a catástrofe está iminente num futuro não muito distante. Os filmes das décadas de 60 e 70 lidavam com o medo de outra maneira. A 'Barbarella' controlava o universo da sua nave espacial com confiança. As orelhas pontiagudas de Spock deixavam bem claro que ele era um extra-terrestre - mas esse 'background' não humano não o impedia de estar bem integrado no posto de comando do 'Star Trek' (...). O medo não só tinha uma causa, como podia ser ultrapassado. Os frequentes planos ao ar livre, com muita luz do dia, enfatizavam esta crença em esquemas utópicos", reflecte Sabine Hillen no texto que acompanha a instalação. "Na viragem para os 80, a ameaça do medo torna-se mais intensa. A imaginação do futuro parece obstruída por traumas que têm a sua origem no presente. O mundo de 'Blade Runner - Perigo Iminente' e de 'O Dia da Independência' não é ameaçado pela experiência de uma catástrofe. É a possibilidade de um desastre iminente que torna a vida insuportável (...). Isto não acontece apenas porque os esquemas utópicos desaparecem ou porque a arena política se altera: é a própria confiança no progresso técnico que está minada", continua.

Essa deriva distópica que caracteriza a ficção científica contemporânea não é a única maneira de ver o futuro em Vila do Conde. "O ponto de partida para este programa foram as imagens produzidas nos anos 50 e 60 - são imagens muito apelativas, ao mesmo tempo muito modernas e muito retro. Isto não é uma compilação dos melhores filmes de ficção científica - isso seria programa para um ciclo de dois meses na Cinemateca Portuguesa", explica Miguel Dias. No 17º Curtas é programa para seis sessões preenchidas por curtas-metragens "raras e anónimas" (na sua maioria, filmes comerciais ou promocionais encomendados por instituições como a General Motors e a Nasa) que os programadores encontraram em arquivos especializados - e ainda para dois filmes-concertos, um com música do alemão Kazike para filmes experimentais de Lilian Schwartz, artista americana pioneira na criação de imagens geradas por computador (segunda-feira, 23h30), e outro com música dos La La Resonance para o "Viagem à Lua" (quinta-feira, 00h30).

O futuro é agora. Teletransportamo-nos?

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