Agnès Varda de A a V

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As Praias de Agnès" passa a vida de Agnès Varda em revista, numa viagem conduzida pela própria cineasta. Será que, num país como o nosso, em que há muito tempo se perdeu a capacidade de relacionamento com as grandes (e com as pequenas...) figuras do cinema europeu, "As Praias de Agnès" ainda vai encontrar um público com quem dialogar? Por outras palavras, a menção do nome Agnès Varda ainda sugere alguma coisa aos potenciais espectadores que não seja apenas um esgar de estranheza? O que se segue é um pequeno contributo, de A a V, para minorar esse estranheza.

A
 de Autobiografia

Com “As Praias de Agnès” não há que enganar: é pura e explícita autobiografia, um relato de um percurso de vida e um exercício de memória, factual e emocional, que cruza o “público” e o “íntimo”. Mas, ao mesmo tempo que é certo dizer que Varda nunca fez autobiografia desta maneira, é impossível deixar de notar o modo como esta dimensão, pessoal e confessional, foi ganhando espaço dentro do seu cinema ao longo dos últimos vinte anos. “As Praias de Agnès”, iluminando algumas remotas ligações entre a “obra” e a “vida”, confirma-nos que os filmes de Varda viveram, desde o princípio (tudo o que diz respeito ao seu primeiro filme, “La Pointe Courte” (1954), tal como “As Praias” o narra), em relação com um esboço autobiográfico e com, a cada momento, uma experiência de vida. Desde “Jacquot de Nantes” (1991), onde filmou a autobiografia do seu companheiro Jacques Demy que este não teve tempo para filmar, todo este “património” afectivo se foi tornando matéria essencial do cinema de Varda, em constantes revisitas. O seu cinema centrou-se nela própria, como um seu prolongamento físico e emocional (nos “Respigadores”, a relação com a câmara digital praticamente o explicitava), um instrumento de encenação da memória de que “As Praias” é o momento culminante. L.M.O.

B
 de Bruxelas

Agnès Varda nasceu em Bruxelas, numa família com origens gregas (o pai) e francesas (a mãe). Depois da invasão alemã no princípio da II Guerra, e como Agnès (que por baptismo se chamava Arlette) conta no filme, a família achou por bem rumar a outras paragens, no Sul de França tão bem retratado pela cineasta em “La Pointe Courte” ou, ainda nos anos 50, em “Du Côté de la Côte”. Uma das sequências mais comoventes de “As Praias de Agnès” decorre sob o signo de um regresso ao local de infância (Varda tinha 13 anos em 1940), Bruxelas, a cidade, e sobretudo a casa onde a sua família viveu, agora habitada por um coleccionador de comboios em miniatura. Dificilmente o actual inquilino teria um “hobby” mais apropriado - os coleccionadores coleccionam memórias, como Varda faz neste filme, e não há como os comboios para simbolizar a errância e as viagens, “temas” constantes na vida e na obra de Varda. França de Norte a Sul, Cuba, a Califórnia: lugares ganhos, lugares perdidos, lugares - finalmente - reconquistados. L. M. O.

D   
 de Documentário

Quem apenas conhece Varda dos “Respigadores e a Respigadora” e das “Praias de Agnès” poderá ter tendência a colocar a realizadora na gaveta do documentário. E, embora os seus filmes mais emblemáticos sejam ficções ("Duas Horas na Vida de Uma Mulher”, 1961, “Uma Canta a Outra Não”, 1975, “Sem Eira Nem Beira”, 1985), não é nada descabido olhar para Varda como uma documentarista, mesmo que muito “sui generis”, não só pelos temas pelos quais se interessou como pelos desafios que colocou à forma - não se chamasse um dos seus filmes do “interlúdio americano” “Documenteur” (1981). O trocadilho, intraduzível, levanta a dúvida metódica da fronteira entre o documentário e a ficção, entre a “verdade” e a “mentira” - coisa com que muito do cinema de Varda nunca se preocupou (porque uma verdade filmada se pode tornar tão fantasista como uma ficção, porque mesmo os documentários mais assumidos têm o seu quê de reconstituição). Já a sua primeira longa, “La Pointe Courte” (1954), rodada no porto de Sète onde a cineasta passou a sua infância, interligava dois fios narrativos, um mais ostensivamente ficcional, o outro mais aparentemente documental. Mas onde começa uma e acaba o outro? Na sua obra, não é fácil definir essas fronteiras. J.M.

F
 de Fotografia

A fotografia foi a actividade formativa de Agnès Varda, e foi como fotógrafa a sua primeira ocupação profissional. Nunca deixou de fotografar (muito e bem) ao longo de toda a sua carreira de cineasta. Pode-se dizer, sem que isso seja mera força de expressão, que nos seus filmes se revela amiúde uma alma, um espírito de fotógrafa: o gosto pelo “instantâneo”, pelo “flash” de vida, triste, absurdo, divertido, arrancado no momento exacto. Em “As Praias de Agnès” há muitos momentos com fotografias, tiradas por Agnès ou por outros, e muitas ocasiões para breves “ensaios”, os poderes e os mistérios da fotografia. E se na sua obra há vários “filmes de fotógrafa”, sobressai especialmente o relato de uma viagem a Cuba em princípios dos anos 60, “Salut les Cubains!”, construído de uma ponta a outra com recurso ao portfólio recolhido durante a viagem. L.M.O.

J
 de Jacques [Demy]

Haverá poucos cineastas que apelem de tal modo à cinefilia, e que sejam mais amados pelos cinéfilos e menos recordados pelo público em geral, do que Jacques Demy (1931-1990), o funâmbulo de Nantes que criou uma das obras mais pessoais e intransmissíveis do cinema de autor europeu do pós-II Guerra. Viajando num carril paralelo à Nouvelle Vague, com a qual partilhava o amor do cinema de Hollywood e a vontade de experimentalismo, é ainda hoje o cineasta dos “Chapéus de Chuva de Cherburgo” (1964), assombroso melodrama clássico em modo de musical-limite (sem um único diálogo falado). O sucesso global desse filme cantonou-o como o único defensor do musical clássico na Europa ou como um cineasta de “féeries” fantasistas, obscurecendo o lado sombrio do seu universo. Nada do que Demy fez a seguir foi tão bem recebido como os “Chapéus de Chuva”, e a sua obra posterior é tão mal-amada e pouco vista como aquele filme foi aclamado. Demy e Varda partilharam vida e obra durante quase 30 anos e Varda dedicou-lhe a autobiografia que Demy não pôde filmar, “Jacquot de Nantes” (1991), reconstituição da sua infância completada pouco depois da sua morte. J.M.

L
 de Los Angeles

Na realidade, existem não um mas dois interlúdios americanos na obra de Varda: um primeiro, entre 1968 e 1970, acompanhando Jacques Demy que rodava a sua única experiência em solo americano, “Model Shop”, e um segundo, entre 1979 e 1981, durante um período de separação do marido. Da primeira vez, roda o que ficou conhecido como o seu “filme hippie”, “Lions Love” (1969), exploração lúdica da vida na Hollywood da altura em modo semidocumental com o modelo de Warhol Viva e Jerome Ragni e James Rado, os criadores do musical “Hair”, filmou os activistas dos Black Panthers e o seu tio que mora em São Francisco, fez um “screen test” a Harrison Ford e conheceu Jim Morrison (de quem ficou amiga e em cujo funeral parisiense esteve presente). Da segunda, filma o documentário “Mur Murs” (1981), sobre os murais de rua da cidade, e “Documenteur”, ficção semidocumental/semiautobiográfica. São momentos-chave na construção do universo formal da cineasta, dissolvendo as fronteiras entre o documentário e a ficção. J.M.

M
 de Margem Esquerda

Margem esquerda, sem conotações forçosamente políticas. É a margem esquerda do rio Sena, em Paris. O epicentro da “nouvelle vague” deu-se na outra margem do rio, em torno da Cinemateca francesa e da redacção dos “Cahiers”, onde todos esses nomes depois tornados célebres (Godard, Truffaut, Rivette, Rohmer, etc.) inventaram e viveram uma cinefilia fervorosa e familiar, marcada por percursos comuns. Agnès Varda, assim como Alain Resnais, vinha da “margem esquerda”, designação geográfica mas também “cultural”, com preocupações culturais diferentes, trajecto iniciado em solitário, e uma aproximação ao cinema menos marcadamente cinéfila ("não sou cinéfila”, ainda diz
n'"As Praias"). Mas a comunhão de interesses numa prática do cinema nova e revigorante criou uma ponte entre as duas margens, ou um encontro entre duas famílias que não deixaram de se visitar mutuamente - também foi isto a “nouvelle vague”. L.M.O.

R
 de “Os Respigadores e a Respigadora"

Não fosse o sucesso deste filme e quem sabe se estaríamos hoje aqui a falar de “As Praias de Agnès” - não porque Varda não o tivesse filmado, mas porque o documentário que a realizadora dedicou em 2000 à arte do “respigamento” (aproveitar aquilo que os outros não querem ou que descartaram) se tornou numa pequena sensação que obrigou à redescoberta do percurso da cineasta. E fê-lo dentro dos parâmetros do universo de Varda - um olhar sempre arregalado, curioso, humanista sobre o mundo que a rodeia, integrando-se a si própria no seu filme (que se tornava assim numa “reportagem” personalizada sobre o respigamento...) para provar que o seu próprio papel de cineasta, “aproveitando” tudo aquilo que passa ao lado dos “outros” para propor uma outra maneira de (vi)ver, não andava longe do que os outros faziam. Ao mesmo tempo síntese e súmula de uma obra de quase 50 anos no cinema, espécie de “respigamento” daquilo que importava no seu cinema, levou a que Varda fosse finalmente olhada como autora de corpo inteiro e aclamada como cineasta visionária. Aos 72 anos - mais vale tarde do que nunca... J.M.

S
 de Sandrine

Pouco depois da sua revelação no “Aos Meus Amores” de Maurice Pialat, Sandrine Bonnaire protagonizou, para Varda, “Sem Eira Nem Beira”, um dos maiores sucessos da realizadora durante os anos 80. O filme consolidou Bonnaire como uma figura de proa entre a nova geração de actrizes francesas. Dominado por personagens femininas, o cinema de Varda, fosse ficção, documentário ou cruzamento dos dois, ofereceu belos momentos a muitas actrizes - de Catherine Deneuve a Juliet Berto, passando pela hoje esquecida Corinne Marchand (a maravilhosa “Cléo” do seu primeiro filme plenamente “nouvelle vague") ou ainda por Jane Birkin, retratada em “Jane B. par Agnès V.”. Às vezes, como a realizadora refere em “As Praias”, Varda projectava alguma coisa sua nestas mulheres. Até ao dia em que se redescobriu a si própria como protagonista: nos “Respigadores”, nas “Praias”, encontramos uma mulher que se tornou na “star”, em corpo e alma, dos seus próprios filmes. L.M.O.

V
 de [Agnès] Varda

Fotógrafa primeira, cineasta depois, artista plástica finalmente e muito mais tarde, mulher quase sempre, activista quando era preciso, tem 81 anos e viveu a vida que quis como quis, fez o que quis como quis, filmou o que quis como quis. Reinventou-se como Agnès depois de ter nascido Arlette, fez questão de evoluir à margem dos circuitos tradicionais da fotografia, do cinema, das artes plásticas, encarando cada disciplina como um prolongamento ou um complemento das outras. Viveu com Jacques (Demy) uma das paixões que só lemos nos livros; tiveram um filho, Mathieu, actor, e hoje, pelo meio dos seus filmes e das suas instalações, Agnès dirige a Ciné-Tamaris, que produz os seus filmes e gere em perpetuidade toda a sua obra e a de Jacques. Rodou o primeiro filme, “La Pointe Courte”, em 1954, montado por Alain Resnais, e com “Duas Horas da Vida de Uma Mulher” (1961) foi alinhada com a “nouvelle vague” da qual seria a representante feminina. Mas manteve-se sempre não-alinhada e só lhe podemos agradecer por isso. Depois dos “Respigadores” (2000), começámos a descobrir os tesouros que a sua obra ainda esconde - e “As Praias de Agnès” é o seu índice remissivo... J.M.

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