Destroços

Foto

O filme de Manuel Mozos não se ocupa de nós como somos, mas como acabámos de ser.

"Ruínas" é sobre os destroços do passado recente, muito recente, o passado de há 50 anos. Estes destroços estão mesmo ao nosso lado, mesmo à nossa vista (tanto que não os vemos), ou estão escondidos por detrás dos nossos separadores de auto-estrada, esquecidos para lá das colinas das nossas eólicas, no meio das nossas matas de eucalipto.
O filme começa com uma história do século XIX, uma história excessiva, pela qual perpassa a paixão à qual o filme recusa depois ceder, servindo-nos a emoção apenas a frio. É uma história que nos coloca imediatamente fora do nosso tempo mas não muito longe do nosso tempo, não num passado histórico dignificado pela distância. Aquele é o passado em que os nossos avós morriam de amor.

Todos os destroços que o filme mostra estão num estado de delapidação e abandono completos (por isso os designo por destroços), cujo símbolo maior talvez seja a Estalagem Gado Bravo na chamada "recta do Pegões", por onde passavam todos os veraneantes que, antes de haver auto-estradas, escolhiam seguir para o Algarve pela ponte de Vila Franca. É um edifício digno que ainda está ali, cada vez mais escancarado e partido. Merece de nós um olhar de esguelha, quanto muito. Manuel Mozos foi gravar a sua destruição e o seu ruído de fundo, o impiedoso zumbido do trânsito.

As imagens e a banda sonora de "Ruínas" não são, portanto, sobre um passado de ruínas ou monumentos. Vemos antes a devastação, tão calma e distante que arrepia, do belíssimo restaurante panorâmico de Monsanto. Vemos o silêncio do Bairro de Habitação Económica do Estado Novo no Alvito, os edifícios abandonados da Hidroeléctrica do Douro, a ruína da Pousada das Penhas da Saúde. Vemos um extraordinário hotel sobre o mar, sossegados sanatórios do início do século XX. Tudo isto são restos de épocas em que os empreendimentos do Estado alimentavam centenas de famílias e lhes garantiam casa, cuidavam da paisagem e da arquitectura, deixavam uma ideia de eternidade e segurança em cada pedra assente num parapeito, em cada viga de betão lançada sobre o vazio. Mozos filmou também minas, barcaças e estações de caminho de ferro varridas pelo vento e o desmazelo, a ferrugem que restou dos sonhos de um Portugal autónomo industrialmente. E gravou para a banda sonora destroços de quando se utilizavam fórmulas de boas maneiras que não eram menos sinceras que as nossas mensagens de uma cordialidade de teclado e se escreviam cartas pondo um tempo vagaroso em cada frase, cartas que eram escritas tanto para o seu destinatário quanto para a arte de escrever cartas.

Os destroços materiais para que este filme olha fixamente, sem o pestanejar ou o exame mais empenhado dos movimentos de câmara, foram quase todos magníficas peças da arquitectura e da arte modernas e também isso intensifica a estranheza com que olhamos a sua decrepitude. São os melhores sonhos de ontem, o melhor Estado de ontem, as melhores maneiras de ontem, que "Ruínas" expõe como obsoletos e desprezados.

Os melhores  sonhos de ontem

"Ruínas" não é sobre o país degradado, o país-subúrbio, o país-lixo em que se transformou todo o Portugal entre a costa e 50 km para o interior por causa do sucessivo falhanço do Estado nas sucessivas modernidades: a do iluminismo após Pombal, a do liberalismo oitocentista, a da modernização a partir da década de 1960. As imagens da Cova do Vapor e da Fonte da Telha incluídas no filme deviam, em minha opinião, ter ficado de fora na montagem final (embora sejam testemunho da obsolescência rapidíssima de uma vida que é suburbana e pobre mas também digna e aldeã, certamente melhor do que aquela que decorre nos horríveis arredores de Lisboa ou do Porto).

Ao país-subúrbio dedicou em 2006 Daniel Blaufuks o seu filme "Um pouco mais pequeno que o Indiana", uma obra à qual a "opinião" preferiu o politicamente correcto "Lisboetas" de Sérgio Tréfaut, mais conforme as canções de embalar que gostamos de nos cantar a nós próprios sobre nós próprios. Durante muito tempo, o país-subúrbio foi "descoberto", fotografado, pensado, apenas pelos arquitectos e por aqueles que com eles privavam. Hoje, vem ainda da cultura dos arquitectos - e de geógrafos como Álvaro Domingues - a consciência de que esse país não tem já remédio, e que o feio, o subúrbio, terá de constituir a base sobre a qual construir uma vida com a civilidade possível.

O filme de Manuel Mozos não se ocupa disso. Não se ocupa de nós como somos, mas como acabámos de ser... há tão pouco tempo que, nas imagens de um consultório de dentista os instrumentos estão largados sobre as mesas como se o médico tivesse ido lá fora por um momento, talvez atender o telefone.
"Ruínas" não é bom título para o filme. O conceito de ruínas tem uma linhagem pesada. Imagens figurando monumentos arruinados constituíram um tema muito importante para a cultura europeia do final do Ancién Régime. Face às ruínas, filósofos e pensadores sentiam mais agudamente o Fim da História que se aproximava, que as Revoluções confirmariam, que Hegel constataria. Ora, não é o futuro que interessou Manuel Mozos e o seu filme não tem nada que ver com o Fim da História, antes com a suspensão portuguesa da história. Aliás, é neste ponto que "Ruínas" deixa de ser apenas (mais) uma meditação em imagem e palavra sobre a transitoriedade ou a distracção modernas e passa a ser também um testemunho português sobre Portugal.

Os destroços de Manuel Mozos são a história recente de Portugal, de um Portugal orgulhoso e de destino próprio, que fazemos em destroços sem dignidade nenhuma e tentamos esconder no escuro, no sítio onde desaparece a garrafa de plástico que atiramos pela janela do carro, o lugar para lá dos arbustos e do lixo onde jaz a faixa de estrada morta, sem princípio nem fim, que ainda hoje as raposas têm medo de atravessar.

Mas "Ruínas" não nos mete pelos olhos e ouvidos dentro apenas a obsolescência destes destroços. Faz-nos também pressentir a sua ensurdecedora recusa de partir em paz para dentro da noite, recusa que a opinião dominante portuguesa gostaria que o passado tivesse o bom gosto de abdicar. Em Portugal é preciso deixar que à memória colectiva mais recente caia a tinta, apodreça o tecto, enferrujem as dobradiças e os carris, corroa a erva daninha, se partam com o vento as vidraças. Portugal não quer recordar nem quer ver aquilo que foi ontem, ainda ontem, há bocadinho. Quando aceita fazê-lo, esconde a vergonha e o remorso debaixo de estatísticas (que mentem e triunfam porque simplificam tudo).
Há no filme um plano enigmático: vemos nele a tranquilidade do mar embalado pela praia. A vista perde-se-nos no horizonte aberto. Que faz aqui o mar, entre madeiras podres, estuques caídos, carris ferrugentos.

Descansa-nos os olhos? Aponta-nos o caminho secular da fuga? Gosto de pensar que está ali a assegurar-nos de que tudo será um dia limpo pelo sal e pelo sol e que os crânios dos animais de um passado morto ainda ontem, que surgem aqui e ali nas imagens, serão transformados nas formas reverberantes de brancura que encontramos por vezes na areia e conseguimos tomar por vestígios fósseis de um tempo imemorial.

Sugerir correcção
Comentar