O DocLisboa faz serviço público

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Serge Tréfaut, pela última vez na direcção do Doc Pedro Martinho/PÚBLICO

Mais salas, mais filmes, mais retrospectivas, num ano onde o DocLisboa assume a sua missão formadora de públicos. Serge Tréfaut, director de saída, Augusto M. Seabra, programador, explicam os porquês de um festival simultaneamente radical e dialogante

"Tomara que as pessoas não levem a mal!" As gargalhadas de Serge Tréfaut ecoam pelos corredores da Culturgest. A uma semana do arranque da oitava edição do DocLisboa, a equipa do festival afadiga-se enviando e-mails, atendendo telefones, desenrolando cartazes. Lá fora a chuva cai torrencialmente, Tréfaut entusiasma-se e espera que as pessoas não entendam mal o que ele diz sobre a "missão formadora" do Doc, "uma estratégia quase política", nas suas palavras, "de fazer aquilo que as entidades principais não fazem".

Ou seja? "Há qualquer coisa de missão - 'missão' é uma palavra um bocado pretensiosa e tonta; se calhar é mais ambição - de ser um espaço que traz às pessoas aquilo que elas de alguma maneira devem precisar. Fazemos aquilo que outras instâncias deveriam fazer, a começar pela televisão."

Tréfaut, documentarista, realizador de "Lisboetas", director do DocLisboa desde 2004, dirige este ano pela última vez o certame. É uma "saída em beleza": a maior edição de sempre, com três retrospectivas importantíssimas, um grande ciclo temático histórico e uma competição e secções paralelas fortes. Uma "sobredose" que vai até contra os princípios de Augusto M. Seabra, crítico e sociólogo, programador associado do Doc há alguns anos, este ano director de programação a tempo inteiro.
(Não podem ser mais diferentes entre si: Seabra, 55 anos, pausado, ponderado, reflectido; Tréfaut, 45, expansivo, extrovertido, quase hiperactivo. Mas, entrevistados separadamente, estão em perfeita sintonia, completam as ideias um do outro.)

No texto com que apresenta a programação no catálogo, falando de "transição e novos rumos" para o festival, Seabra confessa-se "crítico do discurso insistente de 'mais filmes, mais salas, mais sessões'" - precisamente aquilo que acontece em 2010, com o Doc a expandir-se para o Cinema City Classic Alvalade e para a Cinemateca Portuguesa para lá das salas habituais (Culturgest, São Jorge e Londres). Reconhece a ironia: "assumo completamente ser crítico de mim mesmo", diz, e avança que se trata de algo pontual - "nestas dimensões", o festival só ocorrerá este ano, devido a compromissos previamente assumidos.

Mas confirma a tal "missão formadora" de que Tréfaut fala. "O DocLisboa é um festival de imenso público e um dos festivais de cinema documental com mais público, num país onde não se vê documentário... Conseguimos um equilíbrio instável por natureza, ao ser ao mesmo tempo um dos festivais documentais mais radicais e com mais público. Faltava apenas acentuar a vertente formadora em relação à história do documentário."

Os monumentos

Daí que, este ano, graças uma janela de oportunidade, parte da programação se dedique aos momentos/monumentos históricos do documentário. Três retrospectivas de peso - Joris Ivens, Marcel Ophuls, Jørgen Leth; um ciclo programado por Ricardo Matos Cabo, "A Cidade e o Campo"; uma presença transversal da história através das várias secções (por exemplo na secção Heart Beat, com um conjunto de documentários sobre a música rock).

Para Seabra, essa vertente historicista é um complemento àquilo que o Doc vem fazendo desde o início, "implica uma posição relativamente aos meios e às possibilidades de conhecimento actual dos clássicos", praticamente inexistentes entre nós de há alguns anos a esta parte, e surgiu da "necessidade de mostrar às pessoas que vêm ao festival procurar as presenças do real e da actualidade os monumentos do documentarismo."

Tréfaut, no entanto, avisa: "Não gostaria que isso levasse as pessoas a crerem que o festival deixou de ser contemporâneo. Falei com programadores internacionais que ficaram surpreendidos com a altíssima qualidade da programação deste ano." Seabra anui, "é um dos anos mais fortes do Doc. Sucedeu. É um facto que há anos mais fortes e mais fracos, mas havia filmes, fizemos as nossas opções e a competição internacional é particularmente forte."

Mesmo que seja o lado histórico que salte à vista? "Tem razão que há algo de muito mais pesado, mais histórico, este ano," diz Tréfaut, que almejava há anos poder apresentar uma retrospectiva Joris Ivens. "Mas fico muito feliz por ter o Ivens neste momento, porque é o seu lado combativo que vem ao de cima, com o qual me identifico, e que continua sendo o do festival."

Isto é uma ilha

Lado combativo que é também o que mais frustra Tréfaut, "na medida em que, na guerra de se tentar fazer mudar alguma coisa, não conseguimos. Não conseguimos porque passa pelos directores das televisões, por uma indiferença absoluta e vergonhosa e escandalosa do primeiro-ministro, do Presidente da República, da ministra da Cultura, relativamente aos instrumentos de formação da sociedade que são a televisão e, de alguma forma, a educação. E assumimos um bocado que, já que os outros não fazem, fazemos nós. Isto é um bocado uma ilha e aqui existe, pronto."

Uma ilha que existe para que "o cinema seja instrumento do pensamento". Seabra: "O documentário deve fazer-nos pensar, não apenas em termos das questões de actualidade, mas também de reflexão histórica. Pode-se fazer uma história do século XX através do cinema." E é importante sublinhar esta palavra: cinema. "É uma posição de princípio que este seja um festival de cinema documental, e mais latamente desde há três anos de cinema do real. Não é um festival para reportagens, para o chamado audiovisual."

Tréfaut faz questão de sublinhar o ponto: "Fico doente quando as pessoas confundem documentário e reportagem. Há uma diferença entre as duas coisas. A preocupação é a de que haja mais conhecimento do que é o documentário no geral, para que as pessoas comecem a associar documentário e cinema."

Seabra aponta uma outra peculiar contradição: "o documentário está muito estandardizado, depende muito da sua passagem televisiva, mas há muitos filmes feitos na mais total liberdade. O documentário é ainda um dos últimos espaços de liberdade que um cineasta tem hoje - com as novas tecnologias, tem hipótese de avançar e fazer o filme que quer com completa liberdade."

Uma coisa viva

Uma liberdade que está patente na possibilidade de ainda se conseguir ser deslumbrado por um filme. "Programar implica ver centenas de filmes, é um trabalho esgotante, que tem o grande risco de poder alterar a nossa relação com o cinema - ver imagens em função de um objectivo, em vez de estar a ver cinema. Mas há momentos nesse processo em que fiquei em êxtase. O 'Passion - Last Stop Kinshasa' [secção Heart Beat], por exemplo, deixou-me em estado de levitação... E é muito importante criar esse espaço para nos deslumbrarmos."

É, aliás, isso que explica os novos prémios da edição 2010. Um deles é um prémio para as melhores primeiras obras, transversal às diferentes secções do festival. "Já havia, e continua a haver, um prémio para primeiras obras na competição portuguesa, mas uma das coisas mais gratificantes, como crítico, é descobrir um novo autor, dar a conhecê-lo. E garanto que alguns dos melhores filmes do festival são primeiras obras."
O outro é um Prémio Especial do Júri destinado à obra mais inovadora, reflectindo também aquilo que Tréfaut considera ser a essência do DocLisboa. "Um festival é uma coisa viva, onde as obras apresentadas são bastante diferentes umas das outras - um festival que se limite apenas a conceitos estanques pode morrer."

Não é o caso do Doc, que em 2010 está vivo e bem vivo: "Gosto que os nossos filmes tenham força, tenham poder, tenham capacidade de transmitir algo", diz Serge Tréfaut. "A nossa programação consegue dialogar com o público."

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