SOS Cultura!

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RICARDO SILVA/PÚBLICO

Francisco José Viegas pretende que os teatros nacionais, companhia de bailado e cinemateca discutam com o seu gabinete a programação e que sejam tidos em conta os resultados de bilheteira - em 35 anos de Democracia nunca assistimos a nada assim na Cultura.

Depois de uma discrição de meses, chegou a hora de o secretário de Estado da Cultura, Francisco José Viegas, fazer grandes anúncios, uns susceptíveis de discussão mas ainda assim compreensíveis, outros de inaudita gravidade.

Começo por recordar, uma vez mais, que foi o próprio Viegas que apresentou a proposta de passagem do ministério da Cultura a secretaria de Estado, com o que isso supõe de desconsideração simbólica e também de desinvestimento numa área que, no entanto, é estratégica nas sociedades contemporâneas. Consequência prática: Viegas é secretário de Estado da Presidência do Conselho de Ministros, mas é o único que não tem assento nesse Conselho, ou seja a Cultura é o único sector que não está aí representado. E assim maior é o risco de que ele seja apenas o executante de uma liquidação, o que é gravíssimo.

Tive ocasião de escrever: "tenho uma dúvida metódica com as pessoas vindas do meio literário que assumem responsabilidades políticas na cultura: em geral primam pela insistência nos valores patrimoniais e de formação, designadamente através do livro, com grande desconhecimento da teia actual de complexidades do sector" (Ipsilon de 08-07-11). Está à vista.

Viegas sublinhou que a política do livro e da leitura será eixo central, anunciando também a fusão da Direcção-Geral do Livro e das Bibliotecas e a Direcção Geral dos Arquivos numa nova entidade, a Direcção-Geral do Livro, Arquivos e Bibliotecas. É compreensível e não vejo razões de objecção.

Anunciadas também e, de resto, algo expectáveis foram as mudanças na área do património, com o Instituto de Gestão do Património Arquitectónico e Arqueológico, o Instituto dos Museus e da Conservação e a Direcção-Regional de Cultura de Lisboa e Vale do Tejo a fundir-se num único organismo, a Direcção-Geral do Património Cultural.

Antes de me debruçar sobre o fundo da questão, faço uma nota a propósito do último item: nunca percebi a que propósito existia uma tal Direcção-Regional. Se esta foi a resolução, não deixa de ser credora de aplauso. Embora não deixe de compreender que há factores territoriais de ordem diferente, ainda assim acho que então tem cabimento perguntar porque se mantêm as outras direcções-regionais, mais, com poderes acrescidos, já que vão passar a ter algumas das atribuições da Direcção-Geral das Artes no respeitante aos concursos para atribuição de apoios. É preciso ter atenção, muita atenção mesmo, a que esses organismos regionais têm sido em geral inoperantes, meras extensões do Estado central e não isentos de influências caciqueiras. Em todo o caso, há aqui uma objectiva e pouco compreensível dissonância da SEC com intuitos genéricos do executivo, como o fim dos governos civis ou das Direcções-Regionais de Educação. A tão imperiosa redistribuição territorial dos equipamentos culturais e da difusão dos espectáculos passa por urgências que a SEC se obstina em negligenciar, como as redes de cinemas e teatros, e não tanto por essas direcções-regionais.

Mas vamos ao fundo da matéria, a fusão entre o Património e os Museus. Ela já existiu no passado quer como Direcção-Geral quer como Instituto. Como tive a ocasião de várias vezes dizer, um aspecto negativo da gestão de Manuel Maria Carrilho foi a proliferação de institutos, sobredimensionando a máquina do ministério, mesmo que alguns, como os de Arqueologia e de Arte Contemporânea, com objectivos bem específicos, fossem pouco burocratizados e ágeis. Depois vieram as sucessivas medidas restritivas. Logo a primeira decisão de fundo do governo Durão Barroso foi uma série de fusões e extinções, algumas das quais, recordam-se?, a directa responsável política, a ministra das Finanças Manuela Ferreira Leite, reconheceu não fazerem qualquer sentido. Depois com o governo Sócrates, veio o PRACE, programa de reestruturação da administração central do Estado, com o qual, nomeadamente, a maioria dos Monumentos Nacionais, até então na tutela das Obras Públicas, foram transferidos para o Património. Agora veio de novo a fusão com o Instituto dos Museus.

Há o risco de se estar a criar ou aumentar um monstro burocrático. Mas há duas questões de facto perigosas. Não posso senão compreender o intuito geral deste governo em reduzir drasticamente o número de institutos públicos. Mas há casos e casos, e neste particular as entidades abrangidas geram receitas, que ficariam próprias no caso de se ter optado por um instituto, mas que vão para os cofres centrais do Estado no esquema adoptado de uma direcção-geral, e isso é muito preocupante, porque ainda mais depaupera um tecido cultural frágil. E há ainda um ponto da maior importância, mas sobre que a SEC prefere manter-se omissa: que fazer com a sobredimensionada Rede Nacional de Museus? Uma coisa se pode dar por adquirida: não haverá uma maior autonomia de alguns museus nacionais, que tanto se justificava.

Mais: diria mesmo que há uma genérica posição da SEC de desconfiança em relação aos organismos que tutela, no sentido de um maior centralismo, até de modo inadmissível, cortando todas as aspirações de autonomia financeira e artística. É a esta luz que se compreende o anúncio, gravíssimo, da concretização e extensão do Agrupamento Complementar de Empresas, reunindo os teatros nacionais, São Carlos, Dona Maria e São João, e a Companhia Nacional de Bailado e também, pasme-se, a Cinemateca Portuguesa. Ironia e flagrante contradição política desta história: o PSD e o governo tinham prometido extinguir a OPART reunindo o São Carlos e a CNB, o que aplaudi, e fazem-no mas para retomar e estender a proposta do tal Agrupamento que fora apresentada pela anterior ministra socialista, Gabriela Canavilhas!

Viegas teve em primeiro lugar muito pouco tacto em não informar dos seus intuitos os responsáveis das instituições abrangidas, criando um ambiente de inquietude e destabilização - mas já se tornou patente que dialogar com os responsáveis das instituições que tutela não está no seu modo de acção. Mas isso, sendo funcionalmente grave, ainda é o menos. Onde é que já se viu os teatros nacionais, a companhia de bailado e a cinemateca reunidos numa única entidade? O SEC saberá que somos parte da Europa?

Anunciar uma poupança de 2,6 milhões de euros nos cargos dirigentes e fundir as estruturas numa só, calha bem ao discurso governamental e encaixa numa lógica economicista mas que ignora as realidades das instituições culturais. Nunca tive a menor das dúvidas que, apesar da desorçamentação sistemática que de há 10 anos a esta parte vem havendo na Cultura, o sector também não poderia escapar aos cortes. Mas esta lógica é absolutamente cega: saberá o SEC que além da programação e das suas cinco sessões diárias (já durante meses este ano afectadas por uma indicação administrativa das Finanças) a Cinemateca também tem a responsabilidade de algo tão importante no domínio do património e do restauro como o Arquivo Nacional de Imagens em Movimento?

Mas há ainda mais grave, gravíssimo: Francisco José Viegas pretende que os teatros nacionais, companhia de bailado e cinemateca discutam com o seu gabinete a programação e que sejam tidos em conta os resultados de bilheteira - em 35 anos de Democracia nunca assistimos a nada assim na Cultura! Depois acrescenta que "não porá em causa nem um milímetro a autonomia artística", o que é uma evidente contradição.

É normal e correcto que uma entidade pública apresenta à tutela o seu plano de actividades, o que é algo de mais lato. Mas discutir com aquela a programação, tendo nomeadamente em conta os resultados de bilheteira, isso é que não. Ao longo de muitos anos tenho expressado a preocupação com a correcta gestão das entidades culturais públicas e com a relação entre custos de produção e taxas de ocupação. Mas os teatros nacionais, e o teatro com apoio público em geral, não podem ser confundidos com produções de Filipe La Féria ou da UAU.

Vejamos por exemplo o Dona Maria: tem a sala principal e também a sala estúdio, desde logo com vocações diferentes. E desde a estabilização, com Maria João Brilhante a presidir à administração e Diogo Infante como director artístico, tem havido uma política equilibrada, inclusive com enormes sucessos - por exemplo, até é de espantar que um êxito com semanas de lotações esgotadas como o "Édipo Rei" de Sofocles não tenha sido reposto em temporadas subsequentes, como é prática internacional corrente. Era o que faltava que equipas de programação competentes tivessem de ir discutir aquela com adjuntos e assessores de Viegas. Isto é inaudito na Europa e grave, gravíssimo.

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