Estranhas formas de vida

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A Arca do Éden, de Marcelo Felix

Quatro entradas possíveis numa competição fortíssima - entre as quais duas surpresas portuguesas.

A competição de longas do DocLisboa 2011, mais concentrada, com menos filmes, traz uma quantidade perfeitamente absurda de bons filmes que vão fazer a cabeça em água ao júri presidido por Peter von Bagh e quase exigiam um jornal inteiro para lhes fazer justiça. Mais, dever-se-á dizer, no concurso internacional (uma espécie de "best of" dos últimos doze meses de festivais); no concurso nacional, com apenas seis longas, há três "tiros ao lado", mas há também duas revelações de estarrecer - e são mesmo revelações, porque são primeiras longas de jovens realizadores.

A Nossa Forma de Vida, de Pedro Filipe Marques (Culturgest, hoje, 17h, e dia 25, 18h30), é um retrato de Portugal em micro-cosmos num apartamento do Grande Porto, visto através do quotidiano de um casal idoso, o sr. Armando que ainda se agarra aos ideais revolucionários e a D. Fernanda que vê as novelas e não lê jornais porque já ouviu tudo na televisão na véspera. Com um misto de ternura e lucidez, entre a gargalhada e a irritação, Marques desenha neste olhar sobre os seus avós um retrato à la minuta do "país real" de que todos falam mas que ninguém conhece.

Nos antípodas deste filme "muito lá de casa" estão as texturas hipnóticas e experimentais de A Arca do Éden, de Marcelo Felix (Culturgest, dias 24, 19h30, e 26, 21h15), ensaio audiovisual sobre a perda e a memória que remete para Jose Luis Guerín ou Werner Herzog. Cruzando o arquivo genético de sementes em Svalbard com o hospital psiquiátrico de Oslo onde foi encontrada uma cópia original da Joana d'Arc de Dreyer, o realizador conduz-nos por um requintado labirinto sensorial que nos faz meditar sobre a realidade e a ficção, o esquecimento e a memória.

E isto tudo enquanto a competição internacional alinha óptimos filmes, que, conforme prometido, dialogam uns com os outros. Como Gangster Runner, do alemão Christian Stahl (São Jorge, amanhã, 21h, e dia 28, 22h), e Vodka Factory, do polaco Jerzy Sladkowski (São Jorge, dia 24, 20h, e dia 26, 21h). No primeiro, acompanhamos os quase três anos de prisão de Yehya, jovem berlinense filho de imigrantes palestiniano-libaneses que escolheu o falso glamour de uma vida de crime; no segundo, seguimos alguns meses Valya, uma jovem de uma cidadezinha de província russa, mãe solteira que sonha egoistamente com Moscovo e a fama rápida, ao ponto de estragar a vida do filho pequeno e da mãe cansada. Em comum, o modo como "abrem o plano" para mostrar também as famílias de Yehya e Valya e nos fazem perceber que os seus comportamentos de revolta, errados ou não, não surgem do vazio e reflectem a complexidade por vezes esmagadora do mundo que os rodeia.

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