A vida de Byron

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A lâmpada de Livermore celebrou o seu centenário em 2001: em cem anos de funcionamento, só se terá apagado durante 22 minutos

Uma lâmpada incandescente acesa ininterruptamente desde 1901 em Livermore, na Califórnia, é o ponto de partida de “The Light Bulb Conspiracy”, documentário que promete ser “a história secreta da obsolescência programada”. O termo, que resume esta era em que quase sempre é mais barato substituir do que reparar, não é novidade para adeptos veteranos de Thomas Pynchon

A maior atracção turística da cidade de Livermore, na Califórnia, é uma lâmpada incandescente que, segundo a versão oficial, foi acesa pela primeira vez em 1901. Desde então, tirando um ou outro apagão provocado por cortes de electricidade e um período de 22 minutos em 1976 durante o qual foi transferida para novas instalações num quartel de bombeiros, a lâmpada tem mantido a sua tímida mas competente voltagem em funcionamento ininterrupto.

O centenário, celebrado em 2001, trouxe-lhe exposição mediática e as atenções de um comité de preservação que, entre outras zelosas medidas, estabeleceu um "site" que permite a qualquer pessoa no mundo apreciar o milagre em directo (http://www.centennialbulb.org/cam.htm). A medida forneceu ainda uma oportunidade aos apreciadores de ironias tecnológicas para fungarem de júbilo: as webcams não têm revelado fiabilidade à altura da tarefa, e a intrépida lâmpada já sobreviveu a duas.

A história é contada no curioso documentário "The Light Bulb Conspiracy", uma co-producção francesa e catalã com realização de Cosima Dannoritzer que utiliza a lâmpada de Livermore como ponto de partida para contar o que promete ser a "história secreta da obsolescência programada". O termo terá sido utilizado pela primeira vez por um obscuro economista chamado Bernard London, que, no pico da Grande Depressão, publicou um panfleto sugerindo um insólito esquema para estimular a economia e atingir o pleno emprego: todo e qualquer produto manufacturado nos EUA (de automóveis a sapatos) seria vendido ao público com um prazo de validade mandatado pelo Governo, no fim do qual seria considerado legalmente "morto", com penalizações fiscais para os consumidores que continuassem a utilizá-lo. Brooks Stevens, um vulto do design industrial, viria a tornar o conceito respeitável durante a década de 50, defendendo abertamente a limitação da vida útil de bens de consumo como um atalho necessário para encurtar os respectivos ciclos de substituição. A profecia veio a cumpriu-se na era da produção em massa de tecnologia informática, em que é quase sempre mais barato substituir do que reparar, contribuindo para fomentar a inovação e alimentar o crescimento económico - bem como os ressentimentos permanentes de uma classe de consumidores condenados à neofilia involuntária.

O documentário de Dannoritzer identifica outra origem para a obsolescência programada como prática institucional: a noite de Natal de 1924, quando um conjunto de empresas que incluía a Philips, a Osram (parte da Siemens) e a General Electric se reuniu num hotel em Genebra para formar o cartel Phoebus, cujo objectivo era regular em segredo o fabrico e a distribuição das lâmpadas eléctricas. Embora essencialmente um mecanismo para combinar preços, aumentar lucros e restringir esferas de actividade, o cartel foi durante anos fonte de especulações e teorias da conspiração, tendo sido acusado de bloquear patentes para lâmpadas de duração infinita - um elemento tão familar na moderna mitologia tecnológica como os carros movidos a água ou as máquinas de movimento perpétuo.

Nada disto será novidade para adeptos veteranos de Thomas Pynchon, cuja obra desde sempre combateu nas linhas da frente do revisionismo paranóico, procurando convencer o incauto leitor de que nada do que aconteceu desde a Revolução Industrial é aquilo que pensamos ter acontecido. Um dos momentos mais memoráveis da literatura do século XX envolve uma acrobática variação pynchoniana sobre os mitos associados ao cartel Phoebus e à supressão da lâmpada perpétua: a história de "Byron the Bulb", essencialmente uma tira de banda-desenhada sem bonecos, contada em oito gloriosas páginas de "Gravity's Rainbow". Byron é uma lâmpada, criada entre milhares de irmãos num viveiro industrial conhecido como Paraíso das Lâmpadas Bebés. Como todas as outras, é dotado de consciência, mas também de algo mais. Por acidente estatístico ou imperativo teológico, Byron é uma anomalia, cujas circunstâncias de produção ("todos os elementos idealmente alinhados") lhe concederam a imortalidade. "O problema com Byron é que ele era uma alma antiga, muito antiga, encerrada na prisão de vidro de uma lâmpada infante". Romântico, fogoso, impaciente, é assombrado por grandiosas visões subversivas de uma revolta contra o destino de escravidão que o aguarda: o seu plano é coordenar uma coreografia estroboscópica capaz de despoletar um ataque epiléptico à escala mundial. O plano não se concretiza, em parte porque a puerilidade das outras lâmpadas não o permite, em parte porque já existe uma organização oposta, um vasto e sinistro cartel corporativo dedicado a reprimir quaisquer impulsos de emancipação - e também a certificar-se de que nenhuma lâmpada atinge as mil horas de funcionamento, colocando em risco as margens de lucro.

Byron começa a sua carreira num salão de ópio em Charlottenburg e vai descobrindo a sua condição da maneira mais difícil: as outras lâmpadas chegam e partem, enquanto ele permanece. Aos poucos "aprende a aceitar a transiência dos outros: aprende que amá-los enquanto aqui estão se torna mais fácil, e também mais intenso - amá-los como se cada hora pré-determinada fosse a última". Os outros começam eles próprios a reconhecer a imortalidade de Byron, mas esta nunca é mencionada directamente; torna-se parte do folclore das lâmpadas, um rumor espalhado através da rede eléctrica. A atenção do cartel é despertada quando Byron ultrapassa o seu prazo de validade regulamentar. A Comissão de Anomalias Incandescentes envia um agente a Berlim para o examinar e, caso as suspeitas sejam confirmadas, extinguir a chama prometeica. Na oficina de um vidraceiro, Byron é confrontado com a sua mortalidade, com a hipótese de ser derretido "no charco primordial e informe onde todas as formas de vidro florescem e reflorescem". Mas algo de estranho acontece. Uma improvável sequência de acontecimentos ajuda Byron a escapar-se aos tentáculos da Phoebus, uma longa odisseia que o vê ser despejado numa retrete, percorrer o Elba até ao estuário, flutuar à deriva no Mar do Norte, ser recuperado e novamente perdido por um padre luterano, transportado até um comício nazi, resgatado por um órfão judeu. "Ao longo destes anos de sobrevivência, os vários salvamentos acontecem como que por acidente".

Não renegando a sua óbvia vocação profética, Byron aproveita cada nova oportunidade para educar as lâmpadas que encontra, pregando solidariedade, alertando para a "natureza maligna" do cartel que as oprime, articulando novas possibilidades: "A Lâmpada pode fornecer calor. Pode fazer crescer plantas. Pode penetrar o olho adormecido e operar entre os sonhos dos Homens". Byron deixa de ser um rumor, e passa a ser um mito. Como qualquer pregador, expõe-se a denúncias e ameaças. Com o tempo aprende a comunicar com outros utensílios eléctricos, ouvindo o que eles têm para dizer, assimilando padrões, compreendendo cada vez melhor o Sistema. Mas o conhecimento traz consigo apenas o desespero: "Os profetas, tradicionalmente, não duram muito tempo (...) mas Byron sofreu um destino ainda pior. Está condenado a continuar para sempre, sabendo a verdade, mas impotente para a modificar. A sua raiva e frustração irão crescer sem limites, e ele dará consigo, pobre lâmpada perversa, a comprazer-se...".

De todas as formas literárias, a alegoria é uma das mais arriscadas, mas talvez a menos vulnerável à obsolescência. Na vida de Byron, Pynchon criou uma alegoria imperecível sobre um objecto inanimado que incorpora a experiência humana elementar, perpetuamente equilibrada entre impulsos transitórios e utopias de imortalidade: a resignada aceitação de que o conhecimento nem sempre expande o perímetro do possível, e de que o mais valioso nem sempre é comunicável. Nada mau para um desenho animado.

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