A vingança serve-se fria (e recupera o investimento)

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Jeremy Saulnier jogou tudo numa última oportunidade de provar o seu talento de cineasta. Ruína Azul, uma história de vingança na América rural, compensou-o.

Jeremy Saulnier aprendeu às suas custas que não é nada fácil seguir uma vocação: para fazer Ruína Azul, investiu tudo o que tinha. Mesmo a casa onde vive.

“Soube que queria fazer filmes e ser realizador desde os meus oito anos de idade. Fiz a escola de cinema, tudo o que era suposto fazer, e tudo correu como era suposto. A minha curta-metragem de final de curso viajou por muitos festivais, ganhou prémios; fiz uma primeira longa que foi um pequeno sucesso e conseguiu distribuição — mas dei por mim à beira dos 40 com uma família para sustentar, e a ter muitas dificuldades para sobreviver...”

Ao telefone desde Nova Iorque, Saulnier admite ao Ípsilon que esta sua segunda longa-metragem, que chega esta semana às salas portuguesas depois de um percurso iniciado há um ano na Quinzena dos Realizadores de Cannes, foi uma “última oportunidade” que se deu enquanto realizador. “À medida que vamos envelhecendo, temos obrigações para com a família, para com o banco a que pedimos dinheiro emprestado para a casa... Tive de me resignar à ideia de que não iria conseguir fazer carreira como realizador. E decidi terminar em alta, deixando para trás algo de que pudesse sentir-me verdadeiramente orgulhoso, um filme que fosse verdadeiramente meu.”

Ruína Azul — em referência ao velho Pontiac enferrujado que a personagem principal guia — era a história que Saulnier queria contar. Um filme de género sobre uma vingança que corre mal, mas ancorado numa realidade muito específica do estado norte-americano da Virgínia, de onde o realizador e o actor principal, Macon Blair (“o meu melhor amigo”), são originários — fugindo ao que Saulnier descreve como “a narração convencional, hiper-artificial do cinema de Hollywood”, mas ao mesmo tempo recusando as fórmulas e as frases feitas do cinema independente. A história de Dwight, um sem-abrigo cuja necessidade de exigir reparação pelo crime que lhe destruiu a vida se transforma numa carga de trabalhos, tem tanto de Kelly Reichardt como do mestre da série B Don Siegel, mas recusa-se a seguir os caminhos “do costume”. “A ideia era que o filme parecesse mais aleatório e casual, mais ancorado na realidade do que a maioria dos filmes de género”, explica o realizador. “O mundo continua a girar, há muitas coisas que temos de tratar, consequências em que não se pensou... Passei o filme a meter-me propositadamente em becos sem saída, pensando sempre no que uma pessoa verdadeira faria.”

Esse lado “aleatório” é o que tem feito muita gente falar dos irmãos Coen e, sobretudo, do filme que os revelou em 1984, Sangue por Sangue, para se referir a Ruína Azul. “É verdade que existem semelhanças tonais entre os dois filmes, mas Sangue por Sangue nunca foi uma das minhas referências”, afirma Saulnier, que cita antes como exemplos “os primeiros Michael Mann, o Paris, Texas de Wim Wenders ou Vidas Privadas, de Todd Field”. E, sobretudo, os primeiros dez minutos de Haverá Sangue, de Paul Thomas Anderson: “São coisas que não são forçosamente conscientes quando estamos a escrever ou a criar, mas que nos vêm à memória. Fiquei esmagado pela abertura de Haverá Sangue — tão simples e contudo tão cinemática, tão épica. Um homem a cavar um buraco, sem diálogos, é mágico!” É um efeito que Saulnier procurou ao longo de Ruína Azul: “Adoro acompanhar uma personagem que não está a fazer as coisas em função da câmara ou do público, não quero forçar a história pela goela do espectador abaixo.”

O pé na porta

Talvez isso explique a dificuldade que teve em financiar esta segunda longa-metragem. “Há muitos bons contadores de histórias por aí”, desabafa, “mas alguns dos melhores cineastas do mundo nunca têm a oportunidade de fazer um filme. É preciso fazer tanta coisa — temos de nos vender, de nos promover, de nos moldar àquilo que nos pedem só para conseguir meter o pé na porta... Talvez seja preciso um vígaro ou um stalker, alguém que seja capaz de fazer o que for preciso, para produzir um filme — e não um artista.” Saulnier foi realizador, argumentista e director de fotografia de Ruína Azul “por necessidade” (mesmo que isso ajude também a deitar abaixo as barreiras entre o filme que tem na cabeça e o filme que roda no plateau). E ao longo dos sete anos que decorreram desde a sua estreia na longa com Murder Party (2007), tem trabalhado sobretudo como director de fotografia para colegas como Michael Tully ou Matt Porterfield, também eles cineastas que fazem das fraquezas forças e produzem os seus filmes de modo inteiramente independente.

“Somos capazes de fazer filmes mais pessoais sem termos de andar com gente conhecida ou importante atrás, basta-nos juntar os recursos de cada um.” Ruína Azul, explica-nos, nunca teve um financiamento tradicional. “Começámos por investir tudo o que tínhamos, juntámos todos os nossos recursos porque sentimos que ninguém nos ia apoiar, apesar de termos tentado tudo. Só depois de esgotarmos as nossas poupanças, reformas e dinheiro é que fomos pedir ajuda para preencher a diferença entre o nosso investimento e o dinheiro de que precisávamos para tornar o filme realidade.” Recorreram ao site de crowdfunding Kickstarter, onde angariaram 37 mil dólares: “Pedimos muito menos do que nós próprios tínhamos investido. E eu arrisquei a minha casa.”

O que se seguiu foi, nas palavras do realizador, uma daquelas histórias que só parecem acontecer aos outros: “Não quisemos acreditar que isto pudesse tornar-se realidade, porque aprendemos a aparar os golpes que nos iam caindo em cima. Levámos algum tempo a acreditar que tudo isto aconteceu mesmo.” Aceite na Quinzena dos Realizadores e recebido com entusiasmo pelos observadores, Ruína Azul já recuperou o investimento: “Ficámos em casa com o acordo de distribuição que fizemos para os EUA, a Quinzena ajudou-nos a vender o filme para todo o mundo e é aí que vamos ter algum lucro.” A quem lhe pede conselhos na esperança de que a sorte grande lhe saia, é lapidar. “Se achamos realmente que temos aquilo que é preciso para contar uma história, temos de ter perseverança e de ser práticos. Foi só depois de muitos anos de paciência e de espera que Ruína Azul foi possível... O importante é mantermo-nos activos, próximos de pessoas com quem gostamos de trabalhar. Se não puder ser como realizador, não faz mal: assistente de realização, director de fotografia, actor, o que for preciso!”

E Jeremy Saulnier acabou por não precisar de vender a casa.

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