Memória de elefante

Um elefante espanta a Europa do Sacro Império, no melhor romance de Saramago desde o Nobel.

A "maldição Nobel" já muitas vezes tem bloqueado criativamente os premiados, impedindo que voltem a escrever obras relevantes.Saramago ganhou o Nobel há dez anos, e há dez anos que não escrevia um grande livro.Dos quatro romances publicados desde 1998, três eram medianos e um, "A Caverna", francamente pavoroso. A maldição é agora quebrada com "A Viagem do Elefante", um belo romance de Saramago que, aliás, não se parece com nenhum outro romance de Saramago. Na verdade, trata-se de um texto leve, quase jubiloso e de leitura francamente agradável (o que não é o adjectivo saramaguiano mais evidente). O escritor concentra-se num episódio histórico, que acrescenta e completa a seu gosto, e não se preocupa demasiado em acentuar as alegorias. O que o motiva é a liberdade narrativa dentro de um formato que é o do impropriamente chamado "romance histórico". Saramago teoriza: " (...) há que reconhecer que a história não é apenas selectiva, é também discriminatória, só colhe da vida o que lhe interessa como material socialmente tido por histórico e despreza todo o resto, precisamente onde talvez poderia ser encontrada a verdadeira explicação dos factos, das coisas, da pura realidade. Em verdade vos direi, em verdade vos digo que vale mais ser romancista, ficcionista, mentiroso" (pág. 227).O episódio que o romance conta, a seu modo, é a viagem de um elefante oferecido por D. João III ao seu primo, o arquiduque Maximiliano da Áustria. Estamos em 1551, decorrem as cisões religiosas e o Concílio de Trento, e este gesto de boa vontade de um príncipe católico para com um futuro imperador tem evidente significado político. O elefante, que veio de Goa e estava enjaulado em Lisboa, é um símbolo do (algo fanado) esplendor de Portugal, como o rinoceronte que D. Manuel havido enviado ao Papa. A Europa nunca tinha visto um elefante, e D.João pretende agradar Maximiliano e espantar a sofisticada Viena com o imponente paquiderme do Império lusitano. Maximiliano é casado com uma filha do Imperador Carlos V, e o elefante é uma espécie de passagem de testemunho do Império português (a poucas décadas de perder a independência) aos novos senhores do mundo. A Maximiliano também interessa a oferta, que ele usa como instrumento para ofuscar os súbditos com a sua glória.Estabelecido o contexto político, Saramago centra-se na viagem de Lisboa a Viena, passando por terras espanholas, italianas e depois pelos Alpes. O romance surpreende porque exibe uma pujança narrativa comparável aos grandes romances de aventuras como os de Júlio Verne ou os clássicos de cavalaria: "O comandante anda a ler pela quarta ou quinta vez o seu amadis.Como em qualquer outra novela de cavalarias, não faltam batalhas sangrentas, pernas e braços amputados cerce, corpos cortados pela cintura, o que diz muito sobre a força bruta daqueles espirituais cavaleiros (...)" (pág. 97). Aqui não há batalhas sangrentas nem membros decepados, mas uma descrição minuciosa da logística da viagem, numa coluna de coches, carruagens, carroças, cavalos, e claro, o elefante de quatro toneladas de peso e três metros de altura. A caravana atravessa chuvadas, rios, zonas infestadas de lobos, montanhas, desfiladeiros e nevões: "Vinte léguas tinham sido suficientes para passar dos contrafortes arredondados, que eram como falsas colinas, à agitação tumultuosa das massas rochosas, rasgadas em desfiladeiros, erguidas em píncaros que escalavam o céu e donde, de vez em quando, se precipitavam, vertente abaixo, velozes aludes (...)" (pág. 226). Este itinerário lembra a odisseia dos míticos elefantes do cartaginês Aníbal, ou então um daqueles filmes de Herzog em que a audácia humana desafia a fúria dos elementos.É a ideia de itinerário que interessa a Saramago, que aos 86 anos sabe do que fala."A Viagem do Elefante" traz as marcas habituais de Saramago (linguagem arcaizante, diálogos encadeados, comentários metanarrativos, sarcasmo social, tiradas filosofantes cépticas, considerações sobre a natureza humana e uma infindável série de alusões bíblicas), mas está muito ligado à história que conta, em vez de se perder em parábolas demasiado explicativas. A viagem é a viagem do elefante Salomão e do cornaca Subhro (depois rebaptizados ao gosto germânico), e as cenas de grupo (quase todas óptimas) mais destacam este duo indiano estreitamente ligado, o tratador empoleirado no cachaço da besta, e o animal capaz de gestos quase humanos. Saramago tem a sensatez de não se aventurar demasiado na tentativa de (cito) "entender os elefantes", como já fez por exemplo com os cães; o elefante é aqui um mundo desconhecido servido como espectáculo aos ocidentais, que recebem engalanados e temerosos esta oitava maravilha. Se o cornaca tenta perceber o Ocidente com um misto de insolência e receio, o elefante é o estoicismo em pessoa, ou antes, em bicho, vindo de uma civilização onde é tido como deus (o deus Ganeixa) para uma outra em que quase o demonizam (Saramago põe os padres a exorcizá-lo e benzê-lo, como se ousassem a conversão dos elefantes). Mas nem Maximiliano, futuro Imperador do Sacro Império, consegue roubar protagonismo ao elefante, e isso é que interessa a Saramago: anunciar que todo o poder do mundo é coisa pouca comparada com a viagem de um elefante.

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