Segregação gay à lupa

Afastar homossexuais das Forças Armadas nos EUA é inaceitável e tem custos elevados para a democracia e a eficácia militar

Pode um livro sobre a discriminação de gays e lésbicas pelo exército americano trazer alguma luz sobre os trâmites da legalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo em Portugal? A lição a tirar parece ser esta: por muito que um candidato a um cargo público se comprometa com os defensores da causa gay (e de outras causas) no sentido de alterar leis, uma coisa é o que diz, outra o que de facto faz. Este livro apresenta provas de que a afirmação não é apenas um lugar-comum. Mas há mais.

"Unfriendly Fire", de Nathaniel Fank, 38 anos, investigador no Palm Center da Universidade da Califórnia e professor de História na Universidade de Nova Iorque, conta a história e as consequências de uma política instituída pelo antigo presidente americano Bill Clinton. Conhecida por "don't ask, don't tell, don't persue" (DADT - não perguntar, não dizer, não perseguir), estabelece que os homossexuais, homens e mulheres, só podem fazer parte da força militar americana se se mantiverem abstinentes e não falarem sobre a sua orientação sexual. Os que forem denunciados por colegas ou superiores são obrigados a abandonar o posto, seja ele qual for. O mesmo acontece, informa o livro, nas Forças Armadas portuguesas - e na Grécia, Polónia, Croácia, Rússia e Bielorrússia, para falar apenas da Europa.

DADT tornou-se lei federal em Março de 1994, pouco depois de Clinton ter sido eleito. Em troca de apoio político de activistas gay e de farto financiamento partidário de homossexuais bem colocados, o que Clinton prometera enquanto candidato à Casa Branca era, no entanto, bem diferente. Dizia estar disposto a eliminar as normas militares que desde os anos 20 classificavam a sodomia e a homossexualidade como crimes militares (para não serem consideradas discriminatórias as normas referiam-se ao comportamento e não às pessoas homossexuais).

No ano anterior, uma comissão de estudo que originou a política DADT tinha concluído que os gays e as lésbicas minam a ordem e a coesão militares, colocam em conflito os princípios éticos e morais de cada combatente e obrigam as chefias a dar prioridade à prevenção de conflitos internos e a esquecer o treino para combate. No meio destes princípios, que o autor garante não terem sustentação em factos concretos, houve militares que conseguiram transformar a sordidez em argumento: os heterossexuais podem até conseguir uma relação meramente profissional com os seus camaradas gay, mas, na hora de tomar banho, o que passa pela cabeça de um gay ao ver um "hetero" nu no balneário é demasiado incómodo para esse "hetero" e não pode ser tolerado.

Denuncia Frank que Clinton, o Congresso e o Pentágono ignoraram ostensivamente um outro estudo, da consultora Rand, segundo o qual a orientação sexual não é relevante para a selecção de militares.Ou seja: contra provas concretas, contra o compromisso público assumido, contra o acordo estabelecido com o lóbi gay e, até, contra as políticas de países aliados (Canadá, Austrália e Israel não excluem gays das Forças Armadas desde 1993), Clinton acabou por ratificar uma lei de segregação pior do que a que até então existia.

Porquê? Pressão de grupos religiosos, de altas patentes militares, incluindo o general Colin Powell, mais tarde secretário de Estado de George W. Bush, e de dois nomes fundamentais: o sociólogo Charles Moskos e o senador Democrata Sam Nunn.Não é apenas a resenha histórica, demasiadamente exaustiva, aliás, o que interessa no livro. Ele sustenta também que esta política de exclusão tem afastado das Forças Amadas muita gente competente e com talento, está a fazer ruir a confiança dos militares uns nos outros devido ao clima de intimidação existente e a levar muitos "heteros" a serem também investigados.

De resto, a lei tem o condão de tentar rasurar uma evidência para poder encobrir um fantasma. Numa das passagens mais surpreendentes, Frank escreve que os homens gay são fundamentais nas Forças Armadas, porque nelas sempre existiu uma subcultura homoerótica latente de que depende a coesão de grupo essencial à boa performance militar. Ora, a necessidade que os militares heterossexuais têm de negar essa subcultura justifica em parte o apoio que dão à política DADT. Enquanto formos todos "heteros" podemos ter episódios de contacto sexual ou dependência emocional entre iguais, sem que isso faça de nós gays - eis a lógica, segundo o autor.

Os números apresentados permitem, enfim, concluir sobre o carácter arbitrário e perdulário da lei. Desde o 11 de Setembro de 2001, altura em que a América invadiu o Afeganistão e o Iraque, diminuiu drasticamente o número de militares afastados por "conduta homossexual": 7.989 entre 1994 e 2001, mas apenas 4.353 entre 2001 e 2007. Quanto a custos concretos para o erário público do afastamento e substituição de militares gay: 364 milhões de dólares, em 15 anos.

À parte o livro, fica o registo: o presidente Obama ainda não se pronunciou sobre a DADT. Nancy Pelosi, porta-voz da Câmara dos Representantes (órgão legislativo), disse há um mês que é preciso alterar a lei, mas não se comprometeu com datas.

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