Lisboa underground

Uma cidade mal feita e engenhosa, toda ligada debaixo do chão, em camadas de arqueologia e história

Todos os lisboetas sabem o que acontece a Lisboa quando chove muito: a cidade fica caótica, com inundações e acidentes, é o fim do mundo.

Rui Cardoso Martins começa o seu segundo romance com uma dessas chuvadas diluvianas que se abate sobre Lisboa, e a água invade tudo durante duzentas e tal páginas: "Escorria pela cidade e mais chegava pelos veios que desciam das colinas, por arroios adormecidos e pelas calhas dos eléctricos, numa competição de rios sem nome, ribeiras acabadas de nascer, no meio das avenidas e praças, entrando grossa e gelada para dentro dos subterrâneos (...)" (pág. 173).

É para um subterrâneo, mais precisamente para um tubo de esgoto, que são arrastados dois transeuntes, um advogado cego e um miúdo de oito anos. Num incrível "tour de force", o romancista mantêm-nos presos nesse cano gigantesco até ao fim, quase sem luz, às apalpadelas, encontrando apenas ratos, dejectos e ossadas.

É um pesadelo descrito com uma precisão de linguagem que ajuda a manter intacta a claustrofobia. Engolidos pela terra, cheios de fome, frio e medo, os dois acidentais companheiros contam histórias para se manterem vivos: " (...) o que os podia guiar no espaço e no tempo, e dar-lhes forças, enormes e incomparáveis com qualquer desafio recente que se lhes colocara, era a narrativa.

Era falarem e contarem coisas um ao outro, e histórias e livros, tudo o que aparecesse nas suas cabeças" (pág. 72).O miúdo é muito novo, e tem pouca história, embora já alguns infortúnios. O adulto, em contrapartida, tem uma vida inteira de histórias, quase todas ligadas à sua cegueira.

Ele um "homem invisível" (corruptela de "invisual") atormentado pelo desastre que o cegou em pequeno e que o deixou longe do mundo. António, o cego, não é uma alegoria, e faz questão de o garantir, nada de cegueiras metafóricas, ele é um homem que não vê, que já não vê, e que recusa paternalismos e piedades. Os pais andaram em médicos e curandeiros, até que ele perdeu a esperança, pelo menos a esperança de voltar a ver, porque ele tem mais esperança do que as pessoas que vêem.

Rui Cardoso Martins, que conhecemos como atento cronista e repórter de tribunal, joga com os clichés sobre ceguinhos a vender lotaria e depois fala da velocidade com que os cegos andam e que não sabemos bem qual é, da sua obsessão com a limpeza, os joelhos que os guiam entre obstáculos, a lascívia do seu toque. Se há alguma alegoria nestes cegos é apenas na medida em que Lisboa é mostrada como uma cidade em dois mundos: o visível e o invisível. E, como na crença religiosa, o invisível é o mais importante.

O invisível aqui é a Lisboa "underground", a Lisboa de boqueirões, valas comuns, águas pluviais, passagens secretas, estacas. É uma Lisboa que os lisboetas vão descobrindo a cada pequena catástrofe, a cada obra nova. Lisboa é uma cidade ao mesmo tempo mal feita e engenhosa, toda ligada debaixo do chão, em camadas de arqueologia, de história, de higiene pública.

Rui Cardoso Martins convoca o Grande Terramoto, as cheias de 1967, os incêndios, todas as tragédias de uma cidade que tem no seu código genético um grande terramoto futuro, o terramoto que vai ser a sua destruição. É pois um tom catastrófico, o deste romance, que se afasta da tragicomédia autobiográfica e regionalista do muito recomendável "E se eu gostasse muito de morrer" (2006).

As personagens principais estão aprisionadas, mas "Deixem passar o homem invisível" vai percorrendo Lisboa, por cima e por baixo. De São Sebastião ao Cais das Colunas, é uma viagem por uma perigosa cidade de túneis, às vezes tão infecta como a "Cloaca Máxima" da Roma Antiga. Tal como os túneis, as histórias das pessoas estão todas ligadas, mesmo a daqueles dois sinistrados, e se o romancista força um pouco a nota, também consegue tornar pungente essa correspondência entre o invisível material e o invisível da alma. Alma, diga-se, num sentido estritamente materialista, pois são incontáveis as referências cépticas e cáusticas à religiosidade, quase sempre vista como um lastro invisível de crendices num país sofredor. Há uma passagem notável em que uma personagem secundária (e não totalmente conseguida) desmonta todos os milagres atribuídos a Cristo. É um mágico, esse homem, e acredita mais em Houdini do que em Jesus, mas ainda assim introduz a necessidade de um milagre, sem o qual nada faz sentido.

Enquanto os bombeiros trabalham, durante duzentas páginas, enquanto os protagonistas sobrevivem, durante duzentas páginas, é sobre este milagre, possível ou impossível, que vamos pensando: "O dia chegara a Lisboa, como sempre. Fenícios, cartagineses, romanos, muçulmanos, cristãos nas margens do Tejo olhavam o sol a tocar a fortificação da colina, todas as manhãs de todos os séculos (...), aqui em baixo os comerciantes abasteceram os navios do Império romano, o necrotério debaixo do banco comercial, caves de pedra grossa na Rua da Conceição, descobertas em 1755, uma vez por ano bombeia-se a água e descemos às termas romanas da Baixa, que não são termas, se calhar guardavam pasta de peixe e ânforas. Mas as águas, dizia o povo, curavam a cegueira, uma nascente brotou ali, quente, sulfurosa, no dia do Grande Terramoto. Quando a terra parou, e o maremoto retrocedeu, e o fogo se extinguiu, os cegos de Lisboa passaram a ir lá molhar os olhos, ainda hoje há excursões de cegos, cada um acredita no que quer, Deus distribuiu esperanças infundadas, e outras razoáveis, é por isso que as pessoas vivem à espera do que lhe falta acontecer" (pág. 217).

Enquanto esperamos, acontece tudo e não acontece nada: anotações jornalísticas exactas, compaixão humanista, farpas ao estado da Justiça. E fragmentos, trocadilhos, evocações tristes, uma existência sempre à espera de um milagre. Nem que "milagre" seja o nome que nós damos aos truques.

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