Salto no escuro

Saga familiar repartida pelos dois lados do Atlântico: rudeza e ternura em equilíbrio instável.

Natural de Toronto, filho de pais portugueses, Anthony de Sá (n. 1966) é um escritor canadiano de origem açoriana. O seu primeiro livro, "Barnacle Love", publicado em 2008, finalista do Scotiabank Giller Prize, acaba de ser traduzido como "Terra Nova". Sem que se perceba porquê, a edição portuguesa não faz menção ao título original. Colm Tóibín, que fez parte do júri do prémio, realçou a destreza e mordacidade do autor, bem como o tom simultaneamente "contido e elegíaco" da sua escrita. É curioso que Anthony de Sá tenha escolhido a mnemónica da saga familiar para tema do primeiro livro.Professor de inglês em Etobicoke, o autor aproveitou o ano sabático de 2004 para frequentar o curso de escrita criativa da Humber School for Writers. Este livro é o resultado dessa decisão.

O romance encontra-se dividido em duas partes, cada uma delas com cinco capítulos. Denominador comum, a diáspora açoriana: "Os Açores não tinham nada para lhe dar. A minúscula ilha de São Miguel era sufocante, perdida no meio do Atlântico. Percebera desde muito cedo que o mundo que a mãe criara para ele era demasiado pequeno, demasiado previsível." Tão previsível como as solas esburacadas dos sapatos terem de ser forradas com "barbas de milho". É contra esse destino que o texto se ergue. Anthony Sá cerziu os vários episódios num macrotexto de grande precisão.

Logo a abrir, "Acerca de Deus e do bacalhau" introduz o leitor no mundo de escassez dos pescadores pobres. Prolongando o intróito, se assim lhe podemos chamar, "Motivo de queixa" confirma o desembaraço do autor no manejo dos recursos narrativos, descrevendo o universo masculino da pesca do arrastão, nos seus momentos de pânico, euforia, compaixão e crueldade.

É extraordinária a empatia com que Anthony de Sá nos dá a conhecer os costumes, de certo modo "tribais", de Lomba da Maia, nos idos de 1950. Lomba da Maia é uma freguesia rural da Ribeira Grande, na ilha de São Miguel, onde nasceu e viveu a sua família. Não se trata de emprestar "cor local" à intriga. O discurso flui com naturalidade, como se toda a vida o autor ali tivesse vivido, cumprindo os rituais pouco menos que medievais que eram de uso, no equilíbrio sempre instável entre rudeza e ternura.

Por contraponto, a segunda parte do livro tem acção centrada em Toronto, mais precisamente em "Little Portugal", o bairro dos imigrantes açorianos da maior cidade do Canadá. A deslocação geográfica não inibe a matança anual do porco, descrita com rigor escatológico.

A história do "Pequeno Engraxador" serve de pano de fundo ao drama da pedofilia: "Uma fotografia do rapaz de enormes olhos encheu o ecrã. Era a única coisa que se via desde há uns dias. Tinha um rosto redondo e exibia um sorriso sincero, entre os largos caracóis que lhe emolduravam o rosto." Nesse dia, António lembrou-se dos "gloryholes" recortados nas traseiras do salão de bilhar do Sr. Jerome, e de Ricky, o amigo que andava com os bolsos cheios de notas de cinco dólares. O capítulo é decalcado do brutal assassinato, em 1977, de Emanuel Jaques (citado pelo seu próprio nome), criança portuguesa de 12 anos encontrada desmembrada no terraço de um prédio de Yonge Street. Anthony de Sá está a trabalhar no seu desenvolvimento, passando o capítulo a romance, com lançamento previsto para 2011, sendo "Carnival of Desire" o título anunciado.

A desenvoltura narrativa é exemplar em todos os registos: na descrição dos atávicos ritos pré-nupciais de Lomba da Maia, quando Manuel troca Sílvia por Georgina; na proscrição de Cândida, a rapariga do batom; na coreografia da morte de Maria Teresa; no relato da violência doméstica; até ao "gran finale" nas cataratas do Niagara, em plena noite de Natal: "Toda a canção tem em si um fogo".

Sugerir correcção
Comentar