Uma semiótica da cagança

O retrato pouco piedoso da burguesia inglesa da primeira década da era vitoriana.

Diz-se que foi W. M. Thackeray o primeiro a escrever a palavra "capitalismo" e este "Livro dos Snobs" torna a hipótese plausível. Foi editado em 1848 depois de publicados os textos que o compõem durante os dois anos anteriores na famosa revista "Punch". E a hipótese torna-se plausível por duas razões: porque o retrato pouco piedoso da burguesia inglesa da primeira década da era vitoriana mostra vocação sociológica; e porque o talento para popularizar palavras se confirma no êxito que estes textos garantiram ao termo "snob".

Basta consultar o índice para captar a ideia de Thackeray: desde "A influência da aristocracia nos Snobs" até "Snobs universitários", "Snobs literários", "Grandes Snobs urbanos" ou "Alguns Snobs Militares", o retrato da presunção, da inveja, da altivez egoísta e da imitação servil das classes altas percorre todo o campo social e não desdenha atravessar fronteiras (em "Alguns Snobs do Continente" ou "Snobs ingleses no Continente", por exemplo). A descrição dos "sine nobilitate", a expressão mais vezes citada como etimologia provável de "snob" e que designaria nas universidades inglesas os burgueses sem título de nobreza, não tem porém a ambição sociológica das "fisiologias" de Balzac. O projeto está enunciado num capítulo que se intitula "O Snob numa perspectiva jocosa" e o exercício cómico mais ainda sobressai quando se lembra que o título original é "The Book of Snobs by One of Themselves".

Thackeray, aliás, não era só humorista famoso, escreveu também uma série de conferências sobre "Os Humoristas Ingleses do Século XVIII", nas quais falava de Sterne, Swift, Smollett e Fielding, entre outros. Como profissional das letras, teve o mérito original de defender o direito a escrever apenas com o divertimento por finalidade; como inglês, prolongou uma ilustre linhagem de escritores para quem não há nada mais cómico do que a própria Inglaterra.Isto não significa que desconsiderasse a intenção crítica dos seus textos, dos quais o mais famoso é "Feira das Vaidades: um Romance sem Herói", inicialmente projetado como uma série de "Esboços a Lápis e a Caneta da Sociedade Inglesa". Quase o mesmo título poderia ter este "Livro dos Snobs", se nele não se falasse também, por exemplo, de um príncipe consorte alemão que vai à caça "nos viveiros de coelhos em Sintra ou nas reservas de faisões em Mafra" (p. 36) e do seu hábito de nunca receber a arma com que caça diretamente "das mãos de quem as carrega". Mas essas digressões são raras e o que ocupa o espaço maior nas páginas de Thackeray é a figura do snob britânico que "não tem (...) comparação possível no que diz respeito à presunção, auto-suficiência e gabarolice" (p. 136).

Nesse passo, em concreto, está em causa uma comparação com os franceses, alvo satírico tradicional dos ingleses, em particular pela "intolerável vaidade que sentem por la France, la gloire, l'empereur e outras coisas que tais".Nesta espécie de etnocrítica comparada, Thackeray opõe "certa dose de intranquilidade" visível na "fanfarronice de um francês" (sinal de uma "dúvida persistente que lhe diz não ser a maravilha de que se gaba") à mera exteriorização, pelo snob britânico, da "calma de uma convicção profunda": a de ser "a elite do mundo", de maneira tão evidente e incontestável que "outro país qualquer reclamar a mesma condição é, pura e simplesmente, ridículo". A etnocrítica está, portanto, assente na interpretação de comportamentos e atitudes, na compreensão dos sinais, e é exatamente esse, e só esse, o talento que Thackeray reclama para si quando enuncia o nascimento do projeto: "Tenho (e por esse dom me congratulo com uma profunda e permanente gratidão) um jeito especial para reconhecer um snob" (p. 12).

Os que acusaram Thackeray de superficialidade, em geral ou no retrato deste mundo em que "monarcas, príncipes e a tão respeitada nobreza" entram como qualquer outro bajulador "na categoria dos snobs" (p. 45), perdem o essencial nomeando-o. O género de crítica de costumes que Thackeray pratica não é o da impiedosa denúncia social, mas o do jogo de decifração da mercadoria ideológica que circula à (e para a) vista de todos como se qualquer verdade ou "convicção profunda" não tivesse mais profundidade que a própria película de aparências em que se manifesta.

O "Livro dos Snobs" constitui, antes de Saussure e de Peirce e ainda a grande distância de Barthes, uma semiótica da cagança. O snobismo é uma arte da manipulação dos signos guiada pelo fim de obter um poder que afinal não é mais que a força conferida pelos próprios signos do poder. O perito nessa arte só pode ser um humorista, condenado a revelar que no fundo dela nada se encontra para lá da ausência de qualquer fundo. Esta ausência é ao mesmo tempo divertida e deprimente e, por isso, o humorista escorrega para o moralismo de cada vez que se ri.

O modo como Thackeray inventa nomes para os snobs que "descreve", desde Sir Huddlestone Fuddlestone até à duquesa de Fitzbattleaxe, é um dos maiores triunfos da comédia sobre a moral na sua escrita. Nesta primeira tradução portuguesa, nenhuma nota chama a atenção para esse procedimento e há nisso certo snobismo editorial que, a bem dizer, se dispensava.

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