Política da língua

José Eduardo Agualusa escreve um ensaio sobre o português disfarçado de romance

José Eduardo Agualusa já escreveu sobre a geografia e a família numa viagem africana da costa à contra-costa; já fez uma história do nacionalismo africano; já imaginou Fradique Mendes ultramarino; já pôs um homem a vender passados; e, no seu penúltimo romance, "Barroco Tropical" (2009), deu-nos uma visão distópica de uma Luanda futura que exacerba a Luanda de agora. Em "Milagrário Pessoal" escolhe como tema a própria língua portuguesa, que é "portuguesa" na medida em que tem sido também muitas outras coisas: "(...) as linguas desenvolvem-se, evoluem, alimentando-se de outras. A língua portuguesa, em particular, recolheu palavras do mundo inteiro. Garoto, por exemplo, vem do francês gars; branco, do germânico blank, que também significa brilhante ou limpo. Carimbo, do quimbundo ka´rima; bule, do malaio buli; leque, do chinês lieu khieu. Jangada veio de changadam, uma palavra do malaiala de Malabar, na índia (...)" (p. 85). É uma língua mestiça, como todas.

O romance tem um pretexto narrativo para estas divagações: uma investigação mais ou menos policial sobre os neologismos. Mas é apenas um pretexto. O protagonista, um angolano octogenário, anarquista e linguista, ajuda uma aluna, Iara, num trabalho universitário. E inventa o que for preciso para que essa tarefa se prolongue, porque quer estar junto dela. A língua é um corpo vivo, mas Iara também.

"Milagrário Pessoal" é um ensaio sobre a língua portuguesa disfarçado de romance. A capacidade de efabulação de Agualusa é notável, e a prosa tem uma invejável clareza, mas o eixo central do livro podia ser diferente que não mudava nada. Até porque as personagens são esboços. O professor parece em certos aspectos um alter-ego do autor (um homem odiado pelas suas opiniões sobre Angola); e Iara é pouco mais do que uma fantasia sexual, que Agualusa usa para escrever um entusiástico elogio à beleza feminina.

Não é o romance que importa neste romance. Os capítulos sucedem-se, acumulando materiais diversos, citações eruditas, sonhos bizarros, cartas, biografias, páginas da História de Angola, os tigres da Rainha Ginga, o sebastianismo angolano, o desterro africano de Zé do Telhado, num dilúvio. A profusão de histórias é acompanhada pelo gosto da língua. O texto, como na canção de Caetano, roça a língua pela língua de Camões. Para Agualusa, a língua não é uma identidade, mas várias identidades. Como se dissesse: as minhas pátrias são a língua portuguesa.

O escritor angolano conta mesmo algumas histórias que um português acharia embaraçosamente patrióticas. Por exemplo: o homem que resistiu à invasão indonésia de Díli recitando sonetos camonianos. Há muitos casos assim neste livro, uns talvez reais, outros inventados, alguns a meio caminho. Temos o marinheiro que o Gama abandonou em Melinde, espécie de padrão humano que deixasse testemunho. O intelectual purista que vive em Olinda, numa recusa da modernidade ruidosa. E a vida de Zé do Telhado no degredo angolano, com uma aparição especial de Camilo.

Encontramos aqui os habituais elementos da ficção de Agualusa, incluindo parentes patuscos e figurantes com nomes exóticos. Mas a ficção é menos importante do que a profusão de hipóteses sobre a língua, algumas baseadas em bibliografia erudita, outras apenas vagas fantasias poéticas. Agualusa defende que uma língua é a historia toda da língua, todos os empréstimos, contaminações, onomatopéias, memórias de palavras extintas. É uma criatura viva, e por isso merece uma historia, como todos os vivos, uma história complexa, confusa, sem rasuras nem hierarquias. Pegamos num soneto de Camões e uma palavra como "esperança" não pode ser dita com o sotaque português de hoje, porque dizemos "esprança" e estragamos o decassílabo. Ou seja, Camões precisa de ser lido à brasileira, ou à africana, e esse exemplo ilustra um entendimento digamos "democrático" da língua. A língua a quem a trabalha.

Agualusa sabe que a poesia começou por ser uma linguagem prática, útil, ou mágica e xamânica. "Milagrário Pessoal" nunca esquece a dimensão política, nem a política da língua, mas o seu impulso é todo poético, adâmico. O milagre é que esta língua seja tantas línguas, que tantas línguas sejam uma só língua. Um enigma que Agualusa compara ao mais poético dos enigmas: a linguagem dos pássaros.

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