Estacionamento paralelo

Como construir um universo que não desabe quarenta e oito anos depois

Se imaginarmos a Literatura como uma metrópole gigantesca, com os seus guetos, subúrbios e condomínios fechados, será difícil identificar exemplos genuínos de mobilidade social. De vez em quando, um habitante das favelas é cautelosamente recebido entre companhia civilizada - quer por mérito próprio (como Raymond Chandler ou Elmore Leonard), quer pelo equivalente a uma raspadinha (como John Le Carré); o seu progresso será depois monitorizado com atenção, e, nos casos em que um erro é detectado (ver, por exemplo, Martin Amis vs. Thomas Harris ou Harold Bloom vs. Stephen King), assiste-se a uma pequena reacção de pânico e a um reforço imediato do policiamento. Esta tem sido a norma, e a norma tem resistido tanto ao impulso concertado para democratizar o acesso ao "mainstream", como aos ressentimentos vitalícios que provoca nos bairros oprimidos.Philip K. Dick passou a carreira num dos bairros mais oprimidos de todos, a espreitar ansiosamente por cima do arame farpado. É uma ironia menor que a sua liberação tenha sido póstuma, depois de "Blade Runner" o ter transformado numa marca global, e de as recentes edições da Library of America o terem canonizado ao lado de Melville, Twain, Faulkner ou Bellow. Mas já é uma ironia moderada o facto de a crítica académica não se ter antecipado à audiência popular (apesar de estar a recuperar o tempo perdido). "O que é a realidade?", "o que é um ser humano?", o "problema da autenticidade", o "valor da empatia"; temas solenes tratados em linguagem "pulp" - a obra de PKD parece feita de encomenda para uma certa corrente crítica que nunca está mais satisfeita do que quando pode explorar ansiedades espistemológicas através de artefactos pop.

"O Homem do Castelo Alto" representou o pico do seu reconhecimento dentro do gueto (ganhou o Prémio Hugo em 1963), mas permanece uma das portas de entrada mais acessíveis ao iniciado, condensando todos as obsessões temáticas do autor numa embalagem que consegue ser atípica. O romance começa com a premissa básica de uma realidade alternativa em que os Aliados perderam a Segunda Guerra Mundial, e a Alemanha Nazi e o Japão dividiram o globo em esferas de influência, coexistindo num clima de guerra fria. A situação vai sendo registada "en passant": sabemos que Roosevelt foi assassinado em 1936; que o ataque a Pearl Harbour destruiu toda a frota americana; que a União Soviética caiu em 1941; que a guerra terminou em 1947, depois de um devastador ataque nuclear em Nova Iorque; que Hitler "está fechado num sanatório em nenhures, vivendo os seus últimos dias em senilidade"; e que Martin Bormann, o actual chanceller, está ele próprio às portas da morte, com uma luta pela sucessão a ser travada nas sombras entre facções rivais lideradas por Heydrich, Goebbels e outras gárgulas avulsas.

Sabemos também que esta diligente contextualização é apenas nevoeiro - sabemos, em suma, que estamos dentro de um romance de Philip K. Dick - no momento em que nos apercebemos (mais ou menos ao mesmo ritmo das personagens) que nada é o que parece ser. Um industrial sueco revela-se um dissidente Nazi. Um camionista italiano revela-se um assassino contratado. O auxiliar de um almirante japonês revela-se um artesão americano chamado Frink (na verdade um artesão judeu chamado Fink). Antes que o leitor sinta vontade de se olhar ao espelho para confirmar que está tudo bem, os sobressaltos ontológicos são interrompidos por pequenos debates sobre valor e autenticidade, e instantes acumulados de inversão cómica. Numa Califórnia ocupada, por exemplo, são os colonizadores que sucumbem ao contágio cultural - os japoneses adoptam a língua nativa, e alimentam um curioso fetiche nostálgico por artefactos históricos americanos (grafonolas, isqueiros Zippo, armas da Guerra Civil). A comodificação desses artefactos cria uma indústria paralela de contrafacção: relíquias "autênticas" são produzidas em série. Como uma das personagens nota, o valor histórico de um determinado objecto não implica "nenhuma presença mística, plásmica" que o diferencie de uma réplica. O valor que lhe atribuímos (a sua "historicidade") depende de documentação comprovativa, também ela sujeita a falsificação.

As várias pontas soltas são unidas por dois tropos inesperados, dois livros "dentro" do livro. Um é o "I Ching", um manual chinês de geomancia a que várias personagens recorrem em momentos cruciais, procurando nos seus oblíquos hexagramas uma direcção moral. O outro é um romance de culto, banido nos territórios ocupados, mas lido clandestinamente até pelos ocupadores curiosos. "O Gafanhoto Será um Fardo" (o título alude a um versículo do Eclesiastes) postula uma realidade alternativa à realidade alternativa, na qual os Aliados venceram - mas que, crucialmente, apresenta muitas diferenças em relação à nossa (são os ingleses que liberam Estalinegrado, Hitler é julgado em Nuremberga, etc).Convém alertar o leitor desprevenido para o nível geral da prosa, que raramente se ergue acima do rudimentar. Ao contrário de outros autores resgatados ao gueto (como Chandler ou Leonard), e ao contrário até de escritores de Ficção Científica com prosas mais refinadas (como Theodore Sturgeon ou M. John Harrison), PKD não criou um estilo característico e coerente. A execução é por vezes comicamente inepta, dependendo de "overdoses" de exposição numa espécie de versão neanderthal da corrente de consciência - eficaz para voos de especulação filosófica, mas risível para caracterização ou transições narrativas (amostra representativa: "Ai, quem me dera ter aqui o meu oráculo!"). Mas se a execução é deficiente, os instintos artísticos são quase sempre imaculados. PKD usa a ficção não para expressar um cacho de preconceitos, mas para os explorar. E o seu cacho específico de preconceitos, que coalescem obstinadamente à volta da desconfiança em relação a dados sensoriais, encontrou aqui um palco temático ideal para o improviso.

Hannah Arendt descreveu o pensamento ideológico nazi como "emancipado da realidade que apreendemos com os cinco sentidos, insistindo numa realidade mais verdadeira, oculta atrás das coisas perceptíveis". Encontramos a mesma acrobacia mental no gnosticismo, a heresia cristã que obcecou PKD durante toda a sua vida, e cuja principal característica é essa mesma recusa em aceitar o mundo dos sentidos como algo mais do que um anestésico criado por uma divindade menor, insana e mentirosa para nos manter suspensos numa realidade falsa. O desenlace de "O Homem do Castelo Alto" tenta perfurar essa incerteza e encontrar um ponto de equilíbrio entre realidades históricas sujeitas às restrições opostas da subjectividade e da factualidade, onde uma personagem pode reconhecer uma verdade acessível para lá dos dados objectivos e das imposições da ideologia totalitária que os domina. Uma tangente metaficcional chega a sugerir a hipótese de que a realidade alternativa de um livro ("O Gafanhoto Será um Fardo") escrito por outro livro (o "I Ching") não é mais nem menos real do que a realidade alternativa do livro que estamos a ler.

Se toda esta instabilidade parece condensar um relativismo radical, convém salientar a dimensão ética do romance, que em cada momento charneira expõe as cinco personagens principais às ambiguidades morais de um universo em que se pode ser forçado a escolher entre duas monstruosidades. E contudo, cada opção pelo mal menor é descrita como um pequeno triunfo humano, sugerindo que um sólido impulso ético pode ter valor transversal, seja qual for a realidade que se habite. Felizmente para todos, Philip K. Dick partilhou a nossa realidade, mesmo que tenha passado a vida a mostrar-nos outras.

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