Vozes recuperadas da tragédia de um povo

Extraordinário levantamento de casos a partir de testemunhos orais e de diários escondidos durante décadas, a obra de Orlando Figes tem a força e o rigor da História e a intensidade das grandes novelas

Havia mais de 500 apartamentos para altos funcionários do Partido e do Estado na Casa da Beira-Rio, em Moscovo. Por isso rara era a noite, durante o período do Grande Terror, em 1937/38, em que o silêncio não era interrompido pela entrada de rompante de várias viaturas do NKVD, a polícia política de Estaline, no pátio para que dava aquele edifício soturno. Os polícias tratavam de selar as entradas e de procurar, num dos apartamentos, a próxima vítima. Esta, muitas vezes, já os esperava, tinha até uma pequena mala já feita ao lado da cama, sinal de uma incrível incapacidade para tentar escapar. Estas visitas nocturnas sucediam-se mas ninguém fugia da Casa da Beira-Rio, mostrando uma passividade que Orlando Figes identifica como "um dos aspectos mais impressionantes do Grande Terror". Uma passividade ainda mais impressionante se pensarmos que se inspirava numa crença irracional: a de que se poderia ser sacrificado, mas que isso estava a ser feito em nome do Partido e do ideal comunista.

Osip Piatnitsky era, como escreveu Krupskaia, a viúva de Lenine, em 1932, pelo seu quinquagésimo aniversário, um "típico revolucionário profissional, que se entregou por completo ao Partido, vivendo apenas para os interesses do Partido". Mesmo assim este companheiro de Lenine de origem judaica estaria morto cinco anos depois apesar da sua impressionante folha de serviços, nomeadamente no Comintern, a organização internacional dos partidos comunistas. Foi executado pouco tempo depois de ter entrado em choque com Estaline e de não ter feito nada para salvar a vida apesar de conhecer bem o destino dos opositores. Mais: poucos dias antes da noite em que o próprio Yezhov, o chefe do NKVD, o foi buscar à Casa da Beira-Rio, confessou a uns amigos que "se for preciso fazer sacrifícios pelo Partido, nesse caso, por muito pesados que eles sejam, fá-los-ei jubilosamente". Como escreveria outra vítima do terror estalinista, o argumentista Velerii Frid, "éramos todos coelhos, que reconhecíamos à jibóia o direito de nos engolir; quem caísse sob o poder do seu olhar dirigia-se calmamente para a boca da jibóia, tomado por um sentimento de fatalidade".

Foi assim que bolcheviques como Piatnitsky admitiram as acusações mirabolantes de que eram alvo apesar de se saberem inocentes: bastou-lhes que o Partido o tivesse exigido. Porquê? Porque, como recorda Orlando Figes, "ditava a moralidade comunista que um bolchevique acusado de crimes contra o Partido tinha de se arrepender, de se ajoelhar diante do Partido e de aceitar o juízo que ele fizesse dele". E, contudo, estes homens não eram inúteis desqualificados, bem pelo contrário, eram a elite do país. Uma elite que, como os coelhos hipnotizados, aceitou ser dizimada sem resistir: dos 139 membros do Comité Central eleitos no congresso de 1934, nos anos de 1937/38, 102 foram presos e executados e cinco suicidaram-se; no mesmo período foram afastados e mortos dois terços dos membros do alto-comando do Exército Vermelho.

O paroxismo atingido durante o Grande Terror representa contudo apenas o episódio mais extremo das várias décadas de poder soviético que Orlando Figes retrata em "Sussurros" através de relatos da vida comum de pessoas comuns. Fruto de um imenso trabalho de recolha de memórias, cartas pessoais e testemunhos orais, realizado quer pelo historiador britânico, quer pela sua equipa, esta obra é um poderoso fresco, com centenas de personagens e uma grandiosidade que o escritor ucraniano Andrei Kurkov já comparou à do "Arquipélago de Gulag", de Aleksandr Solzhenitsyn. Há também quem evoque "Guerra e Paz", de Tolstoi, ou "Vida e Destino", de Vasily Grossman, mas "Sussurros" não é uma novela histórica, ou mesmo uma novela sobre um fundo histórico: é um livro onde a história é contada pelos próprios e as suas vidas nos surgem tão verdadeiras como inverosímeis, já que muitas ultrapassam a imaginação do maior dos romancistas. Konstatin Simonov, que chegou a ser o escritor mais popular da União Soviética, funciona como uma espécie de anti-herói cuja vida percorre, a par com muitas outras, os diferentes capítulos deste grosso volume de mais de 700 páginas. Filho uma princesa russa, cresceu a tentar ocultar as suas origens, fez-se operário antes de se aproximar do jornalismo, viajou pelo Gulag para relatar os seus encantos, acompanhou o Exército Vermelho para cantar a sua heroicidade, ascendeu ao topo da União dos Escritores como favorito de Estaline, casou-se e divorciou-se ao sabor das conveniências e das paixões, protegeu alguns amigos e deixou cair outros, fez-se voz do ditador quando este desencadeou as purgas anti-semitas, assistiu atordoado à leitura por Khrushtchev do seu famoso "relatório secreto" ao XX Congresso, acabando por passar o final da vida corroído pelos remorsos.

Noutro plano bem distinto decorre a vida dos membros da família Golovin, camponeses remediados apanhados no turbilhão da colectivização e acusados de serem kulaks. Na aldeia onde viviam, Obukhovo, eram apenas a família mais importante, bons agricultores que ajudavam os demais até ao dia em que um activista desqualificado do Komsomol (a juventude comunista), que tinha a ambição de presidir à nova herdade colectiva - o kolkhoz -, os denunciou. Seguiram então o destino de centenas de milhar de outros agricultores e foram deportados para os campos que haveriam de tornar possível, à força de trabalho escravo, as grandes obras dos "Planos Quinquenais". No Inverno seguinte Obukhovo veria morrer metade dos seus cavalos e cada um dos seus camponeses proletarizados receberia apenas 50 gramas de pão por dia. A colectivização forçada do mundo rural russo depressa se revelaria um enorme desastre económico e uma ainda maior tragédia humana. Porém ela marcaria, como lhe chama Orlando Figes, "o corte" entre o mundo antigo e o novo mundo soviético, entre uma Rússia ainda a lamber as feridas da guerra civil que se seguiu à Revolução de 1917 e a Rússia uniformemente submetida a Estaline.

Através das inúmeras histórias comuns de que é feito, "Sussurros" permite-nos sentir de uma forma nova, porventura mais próxima e mais sentida, o que foi o gigantesco exercício de engenharia social levado a cabo no primeiro Estado comunista, permitindo perceber até onde chegou a influência dos poderes públicos e onde esta acabou por não conseguir entrar.

O comunismo é, por definição, um exercício contra os indivíduos em nome do colectivo, pelo que não surpreende que a família tivesse sido "a primeira arena de combate dos bolcheviques", como nota Figes. A "família burguesa" era vista como socialmente prejudicial "por ser conservadora e voltada para dentro", "por ser um baluarte da religião", "por promover o egoísmo e o desejo de coisas materiais". Por isso, inicialmente, na década de 1920, chegou-se a alimentar na Rússia a esperança de que o Estado se substituísse às famílias, ocupando-se das crianças desde o mais cedo possível. "Pelo facto de amar uma criança, a família transforma-a num ser egoísta, incitando-a a tomar-se como o centro do universo", escreveu Zlata Lilina, uma teórica soviética da educação. E um ABC do Comunismo de 1919 defendia que os pais deviam deixar de utilizar termos como "meu" quando se referiam a um filho.

Para conseguirem os seus objectivos os comunistas não hesitaram em criar apartamentos colectivos onde as famílias eram obrigadas a viver em comunidade, quer por ocupação dos apartamentos maiores, quer pela construção de blocos habitacionais onde tudo seria partilhado, da guarda dos filhos à preparação das refeições, passando pela roupa interior e pelos dormitórios divididos por sexos. Claro que estas utopias mais radicais duraram pouco tempo, mas a promiscuidade em que as famílias foram obrigadas a viver, partilhando muitos espaços comuns, também contribuía para a dissolução dos espaços de privacidade e para a generalização da percepção de que todos espiavam todos. De resto o nome da obra - "Sussurros" - reflecte a prática desses tempos em que ninguém se atrevia a falar alto com receio das "paredes que tinham ouvidos" - até porque as paredes eram, muitas vezes, apenas um lençol pendurado a dividir o espaço de duas famílias.

Conforme os anos passaram a elite do regime foi reivindicando para ela, e para a sua família, o espaço que antes se pretendera negar a todos, numa prova de que destruir a célula base da sociedade não estava sequer ao alcance de um ditador como Estaline. Mas isso não impediu que outro tipo de intrusos se infiltrasse em muitos núcleos familiares: os próprios filhos. Por um lado, o regime enquadrava as crianças nos pioneiros - e ai de quem não fosse pioneiro... - e, depois, o Komsomol fornecia a via rápida de ascensão nas estruturas do Partido e do Estado. Por outro lado, o sistema incitava à delação, tendo tornado em heróis nacionais crianças que denunciavam os pais como "inimigos do povo", como kulaks ou como membros das antigas classes dominantes, como sucedeu com Pavlik Morozov, um "herói" de 15 anos celebrado por Máximo Gorky por ter percebido "que um parente de sangue também pode ser um inimigo de espírito". Por fim, criava todo o tipo de estímulos para que o acto de transformação num "bom comunista" fosse não só honroso como, nos anos mais duros, a única hipótese de sobrevivência. "Muitos filhos de kulaks acabaram por ser fervorosos estalinistas, chegando mesmo a fazer carreira nos órgãos repressivos do Estado", conta Orlando Figes. "Para alguns deles, a transformação foi um longo processo consciente de 'trabalho sobre si próprios', que teve custos psíquicos".

O condicionamento da opinião foi tão forte que entre os degredados do Gulag houve quem chorasse a morte de Estaline, da mesma forma que, mesmo passados anos sobre a sua morte, os que entretanto tinham sido reabilitados continuavam a preferir esconder o seu passado. Figes conta-nos a história de um casal onde só depois de décadas de vida em comum e quando, já no ocaso da existência, o comunismo já estava a entrar em colapso, ambos revelaram um ao outro que eram filhos dos campos de trabalho, um segredo que cada um deles tinha ciosamente escondido do companheiro.

"Sussurros" tem, por tudo isto, o enorme mérito de fazer falar alto vozes que os anos do Grande Terror, mas não só, submeteram ao "grande silêncio". Ao fazê-lo faz mais do que dar rosto e nome às vítimas, ou mais do que dar ambiente e cor à história da Rússia estalinista: consegue também revelar-nos o tremendo poder de um sistema que, ao associar o medo ao orgulho de ideologia redentora, conseguia não apenas aprisionar os corpos como condicionar as mentes. Ao investirem tudo no sonho do paraíso na terra e na crença da infalibilidade da doutrina e do partido, milhões de russos caminharam mansamente para o cativeiro e para o martírio e, mesmo quando as portas se abriram, continuaram a não ser homens livres. "Sussurros" é pois também a história da tragédia de um povo, no fundo uma brilhante sequela da primeira e marcante obra de Figes, "A People's Tragedy: The Russian Revolution".

Sugerir correcção
Comentar