O velho e o novo

O romance que inspirou a escrita de "Os Buddenbrook" de Thomas Mann

O escritor e dramaturgo Alexander Kielland (1849-1906) - até há pouco tempo inédito em português - é considerado um dos grandes autores noruegueses do século XIX. Apesar de ter nascido numa abastada família mercantil - e de ele próprio se ter dedicado durante uns anos à indústria - foi um crítico da voracidade capitalista e da cobiça desmedida dos grandes mercadores e industriais que exploravam os trabalhadores e os condenavam a viver em condições miseráveis. Durante a sua curta carreira literária - que durou pouco mais do que uma dúzia de anos, tendo-a abandonado, segundo algumas opiniões, para se dedicar ao exercício de cargos políticos - compôs, com as suas obras, uma espécie de catálogo das preocupações e dos problemas da sociedade da época, em que parece profetizar os históricos movimentos sociais que se iriam desencadear poucas décadas mais tarde. Bastante influenciado pelas ideias de Stuart Mill e do filósofo e teólogo dinamarquês Søren Kierkegaard, ele fez da sua obra literária (peças teatrais incluídas) também um veículo de crítica à hipocrisia do clero e à vacuidade de algumas representações religiosas. Com uma escrita profundamente realista, e tendo a paisagem como elemento essencial da narrativa - o que aliás é uma das fortes características da literatura nórdica, veja-se, por exemplo, os romances de Knut Hamsun -, Alexander Kielland (segundo alguns estudiosos da sua obra) foi incapaz de alterar esse registo realista para se adaptar às novas tendências neo-românticas que então despontavam e tinham os grandes favores dos leitores - esta teria sido a principal razão para ele ter tido uma carreira literária tão curta.

"Garman & Worse", o primeiro romance de Kielland, publicado em 1880, foi a obra que deu a Thomas Mann o mote para a criação de "Os Buddenbrook". Também nele se narra a progressiva decadência económica de uma firma comercial ligada ao transporte marítimo - homónima do romance - e da família que a gere, os Garman, liderada pelo Cônsul Christian Fredrik. Nos arredores de uma cidade costeira da Noruega (nunca nomeada), na enorme propriedade dos Garman, a Sandsgaard, o Cônsul e o filho mais velho vão travando pequenos "braços-de-ferro" na gestão da empresa; o filho quer inovar, o Cônsul quer continuar a fazer as coisas como sempre fez e como aprendera do pai. Ao mesmo tempo, os trabalhadores do estaleiro e dos armazéns vão ganhando consciência da exploração a que estão sujeitos e das suas miseráveis condições de vida. "Matarmo-nos a trabalhar para estes tipos? (...) Quem lhes deu tudo aquilo? Nós, que nos temos aqui matado a pescar, indo para o mar ano após ano, filho após pai, no meio das tempestades, de vigília, noite após noite, ao vento e à neve, para trazer riqueza a estes desgraçados! Olhem só o que recebemos em troca! Em que pocilga vivemos! E nem isso nos pertence, nada nos pertence! É tudo deles - roupas, sapatos, comida e bebida, corpo e alma, casa e lar!"

A história começa com o regresso a casa do irmão do Cônsul, depois de ter passado vários anos no estrangeiro sem dar notícias. As poucas coisas que dele sabiam tinham sido contadas por viajantes que diziam tê-lo visto ora num hotel em Hamburgo, ora num castelo algures, ou em Paris. Richard Garman regressa e traz uma filha pequena, Madeleine; para espanto de todos, não vai trabalhar para a firma, prefere um emprego de faroleiro nos arredores. Os anos vão passando, a filha torna-se adolescente, e ele decide - depois de todo aquele tempo a viver com o pai no farol - mandá-la para casa do irmão. Aí é aceite por Fanny, uma prima por afinidade (que tem uma "relação aberta" com o marido), e começa com ela a frequentar festas sociais na cidade. Depois vai surgindo um ror de personagens masculinas, entre os quais vários religiosos e um jovem da família Worse, um pensador livre que defende ideias de emancipação da mulher: "Em que absurdos princípios, dizia ele, se baseava geralmente a educação das mulheres! Quantos milhares se destruíam, desgastadas pela monotonia dos deveres domésticos! O seu intelecto era desperdiçado e a sua capacidade eliminada."

Alexander Kielland traça com cores fortes um fresco realista de vários tipos de relações familiares, amorosas e sociais num país pobre e conservador, que se debate entre o velho e o novo, entre adoptar ideias vindas de fora ou continuar com as que herdou. Kielland não se esquece de sublinhar ainda a hipocrisia dos clérigos e de uma classe social que dá mais importância ao dinheiro do que aos sentimentos, ao mesmo tempo que faz um retrato muito vivo dos problemas do proletariado. Este é um "romance de época", obviamente datado, mas que continua actual ao retratar uma crítica época de mudança e ao abordar temas de sempre que o inscrevem na categoria do "universal".

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