A evocação da perda

Uma história de inesperados mergulhos nas águas escuras e espessas da alma humana. Um acontecimento literário

Roy é um rapaz que vive com a mãe e uma irmã numa cidade californiana. Tem aulas de trombone, joga futebol e gosta de cinema. Jim, o pai, que vivia longe, desistira do seu emprego como dentista e vendera a casa. No Verão dos treze anos de Roy, o pai convida-o a passarem juntos, numa ilha remota do Alasca, um ano. Reticente, Roy acaba por aceitar. E mudam-se então para uma cabana de madeira aninhada no interior de um fiorde, diante de uma enseada. Não havia vizinhos. O único contacto com o exterior seria um rádio e algumas passagens muito esporádicas que um amigo do pai faria com um hidroavião para lhes levar alguma coisa de que precisassem. Não há estradas nem trilhos, só uma floresta virgem de abetos, bétulas, cedros, e flores silvestres. Levaram mantimentos e um barco insuflável. O lugar era idílico, inóspito e grandioso.

Tudo parece começar bem no primeiro romance do americano (natural do Alasca) David Vann (n. 1966), "A Ilha de Sukkwan" - a que há cerca de uma semana foi atribuído em Espanha o Premio Llibreter, e que antes já fora distinguido como "Prix Médicis" para o melhor romance estrangeiro publicado em França. Mas esse idílio inicial vai começar a ser perturbado. "Os dias claros que tinham tido eram a excepção. Esta chuva densa, e o mundo fechado que formava, era o que teriam pela frente. Seria essa a morada deles." (pág. 51)

As personagens, agora libertas da pressão de um meio civilizado, vão começar a testar os seus limites psicológicos nesta ilha fictícia do Alasca, em que a natureza é trabalhada como material literário de maneira a que um ambiente inóspito possa promover revelações. A forçada pacatez altera-se um dia depois de ambos voltarem à cabana e constatarem que esta tinha sido visitada por um urso, que lhes destruíra a quase totalidade dos alimentos bem como rasgara os sacos-cama. Eles são forçados a arranjar comida, pescando e caçando. E à noite, o jovem Roy começa a ouvir o pai a chorar a seu lado, e mais tarde também a lamentar-se de erros cometidos, de dois casamentos fracassados, de um emprego que odeia. Mas de manhã é como se a noite não tivesse existido. "A verdade é que há em mim qualquer coisa que não está bem. Não consigo fazer o que deve ser e ser quem devia ser. Há qualquer coisa em mim que não me deixa fazer isso." (pág. 54)

A claustrofobia das duas personagens começa a manifestar-se num espaço físico que é o seu oposto, grandioso e aberto. A vida abre caminho por entre lanhos antigos que nunca fecharam nem se transformaram em cicatrizes, em feridas saradas. E a natureza dá uma ajuda, pois ela não serve a Vann como cenário idílico, para embelezar as acções, mas para trazer as personagens para territórios de fronteira, para terrenos de intimidade, deixá-las a afundarem-se em pântanos traiçoeiros que uma frondosa e bonita vegetação esconde. Muito à maneira de Coetzee, também David Vann vai traçando uma espécie de "itinerário moral".

O leitor apercebe-se de que há alguma coisa que não está bem, mas antes muito longe disso. Pai e filho caminham no fio da navalha. A paisagem começa a mostrar as suas escarpas, chove, está frio, o fogão da cabana já não é suficiente, há alimentos que escasseiam, o rádio não funciona sempre que é necessário. Roy deixa partir o homem do hidroavião sem ter oportunidade de falar com ele. Cada um se abandona a si próprio. Mas só chegado a meio do romance é que o leitor sente que a escuridão se transformou mesmo em pesadelo, que tudo se torna avassalador. Com mão de mestre, Vann cria um facto que altera toda a narrativa. E que de alguma forma acaba por provocar a redenção do pai, salvando-o de si mesmo. (Diga-se, para melhor compreensão, que esta história foi inspirada numa tragédia pessoal do autor, o suicídio do seu pai; que ocorreu duas semanas depois de o jovem David ter recusado um convite para passar algum tempo com o pai numa cabana no Alasca.) Com a progressão da história, as inesperadas revelações (como mergulhos fundos em águas muito escuras) não deixam de acontecer. David Vann, com bastante agilidade narrativa, vai usando a paisagem como um espelho dos estados de alma das personagens: "[Jim] atravessou uma época em que parecia não ter nenhuns pensamentos nem recordações. Ficava na cama a olhar para o tecto. Quando saía, ficava a olhar para as árvores ou para as ondas. A água estava calma, sem vagas. Mais do que ondas uma ondulação de vez em quando, a água cinzenta e opaca e com um aspecto espesso." (pág. 150)Com esta história de uma simplicidade inicial enganadora, utilizando uma escrita muito segura e cheia de significado, Vann escreveu um romance inesquecível e que se arrisca a ser, também por cá, um dos "livros do ano".

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