Por amor ao pai

Uma história terna e cruel de amor filial, crítica feroz da hipocrisia que por vezes se esconde por trás da seriedade familiar

Numa pequena vila rural no sul da Dinamarca, na região da Jutlândia, vive o pequeno Allan, de 11 anos de idade - o narrador de “A Arte de Chorar em Coro”, romance de estreia (originalmente publicado em 2002) do dramaturgo e escritor dinamarquês Erling Jepsen (n. 1956). A acção decorre num ano indeterminado do final da década de 60, presume-se por algumas das descrições. Allan, que tem como heróis o anjo Gabriel e o Tarzan (uma espécie de “arcanjo moderno”) - penduradas na cabeceira da cama tem duas pagelas, uma de cada um dos protectores -, vive com os pais e a irmã de 14 anos, Sanne. A pequena mercearia da família está ameaçada pelo declínio económico provocado pelo novo supermercado. O pai de Allan “sabe tudo sobre palavras”. E ele admira-o por isso, por essa espécie de poder encantatório que emociona os outros. “Costuma dizer algumas palavras sempre que morre algum conhecido nosso, e também fala nos casamentos, nos aniversários importantes e essas coisas, mas toda a gente diz que se sai melhor quando morre alguém. (...) é capaz de chegar ao coração das pessoas com poucas palavras simples, e fazer chorar toda a gente.” (p. 27) Depois das inflamadas elegias junto à cova onde o caixão vai ser descido para o eterno repouso do morto, e durante uns tempos, a afluência de pessoas à mercearia aumenta, em especial dos “missionistas” (seguidores de um movimento luterano conservador). Mas num lugar tão pequeno há alturas em que os mortos rareiam e a popularidade do pai acaba por decair, o que não é nada bom para o comércio... Chegam a ir a funerais de pessoas que nem conheciam bem.

Também em casa é apurada a “arte de chorar em coro”: muitos dos serões da família são passados a cantar êxitos antigos, tristes e comovedores, e não raramente os quatro acabam a noite a chorar de emoção, consolados. Mas há serões diferentes, aqueles em que Sanne sai à noite, para ir a festas, e volta tarde (consta que namora com Frisk, o filho do “merceeiro da concorrência”), trajando o vestido curto que o pai a proibira de usar na rua, “mas não em casa”, como ela faz notar numa noite de briga, ao que o pai responde: “sabes muito bem porquê” (p. 62). O pai costuma esperar por ela deitado no sofá vermelho do andar de baixo. Quando ela chega tarde e de vestido curto, ele zanga-se, grita, rasga a camisa que veste. Mas Sanne logo o acalma e aceita dormir com ele no sofá... A mãe dorme essas noites no quarto do casal, no andar de cima... Na sua ingenuidade, Allan acha as outras famílias estranhas. Mas há ainda o irmão mais velho, Asger, que estuda na cidade para ser arquitecto e que muito de vez em quando visita a casa. É ele quem se apercebe de que algo estranho está a acontecer. Mas quando volta para a cidade, Allan, numa espécie de repentina lucidez, chega a dizer-lhe: “Não aguento mais, tenho de sair daqui. Posso morar contigo?” (p. 67)

Este brilhante romance do dinamarquês Erling Jepsen, com toda a sua crueldade e ternura, compaixão e repulsão, é uma crítica ferocíssima a um mundo pervertido, à hipocrisia e à violência que por vezes, dissimuladas sob diferentes formas, incluindo a de ritos religiosos, se escondem na seriedade da instituição familiar. A história, por vezes de um naturalismo grotesco, contada pela voz ingénua de uma criança - mas de que, ao mesmo tempo, não está ausente um olhar perturbado e perturbante - vai descrevendo a monstruosidade sem a perceber, levada por uma espécie de amor cego (ou de fé) pelo pai.

Apesar de este ser o “primeiro romance” de Jepsen, percebe-se que o autor domina com mão de mestre as formas canónicas da narração (a sua estreia na escrita dramática aconteceu quase duas décadas antes). Ao escolher para narrador, arriscando muito, uma “voz” e uma “linguagem” ingénuas (das quais nunca se desvia), no sentido de ser “amoral”, Jepsen fá-lo de maneira a que estas funcionem como o contraponto necessário para uma dramática história familiar com traços de comédia negra (são vários os momentos de humor negro). Ao abordar temas como o incesto, os maus-tratos infantis, a suposta “doença mental”, a cobardia do pai e a aceitação dos factos pela mãe, Erling Jepsen (já o confessou em entrevistas) não quer esconder a “verdade biográfica” que existe por trás.

“A Arte de Chorar em Coro” é um romance que, de tão terno e cruel, dificilmente sairá da memória de quem o lê.

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