Debaixo da espuma

Uma oportunidade rara de descobrir a literatura grega contemporânea através de um dos seus autores mais populares

Chama-se “Matar tempo morto” o primeiro capítulo de Bar Flaubert. E de facto: “Andava lá por baixo a explorá-la. A minha língua excitava a pele tensa, percorri-a, cobri-a com a sua quente lubrificação. Mas o meu espírito estava ausente. Os meus pensamentos corriam à solta, longe dali.”

A uma cena de sexo tórrida em que um dos protagonistas está ausente segue-se a evocação de quase todos os quilos de chocolate que Yannis conseguiu comer até aos 18 anos e uma primeira piscadela de olho literária: “Porque será que por vezes, a recordação de um sabor, mesmo tratando-se de uma pequena madalena, é o suficiente para trazer de volta le temps perdu?.” Depois vem a descrição de uma verdade em que se quer acreditar para afastar uma possível crise de meia-idade de um jornalista freelancer: “Quanto ao aspecto, sou razoavelmente bem-parecido. Um metro e oitenta e sete, cabelos castanhos, rosto magro, olhos verdes, nariz ligeiramente adunco e, quando rio, formam-se umas linhas dos lados da boca como parênteses, e que fazem a minha alegria parecer forçada - mas não é.”

Bar Flaubert, de Alexis Stamatis, é um romance declaradamente ambicioso. Daqueles em que o autor começa por semear o caos, através das pistas que nos vai dando, para depois se fazer à vida e tentar organizar esse lastro. Yannis Loukas está a meio do caminho, perdido. Como bom tarefeiro, aceitou ajudar o pai, um dos escritores mais conhecidos do país, a escrever a sua autobiografia. Do armário não saem esqueletos mas o manuscrito de um romance que, tendo chegado às mãos do pai quase 40 anos antes, não foi por ele acarinhado, tendo o seu autor sido esquecido e desaparecido Europa fora. O romance chama-se Bar Flaubert e hipnotiza Yannis.

Por causa da sua leitura compulsiva, agarra nos fantasmas dos caminhos paralelos entre a literatura do seu país e sua História e arranca de mochilas às costas para, através da resolução de um enigma, entender o pai e a pátria - e perceber-se melhor a si próprio.

De dedução em dedução, de anagrama em anagrama, mergulhamos nas regras de um thriller que nos vai levar a Barcelona, Florença e Berlim. Parece que estamos dentro de um Código Da Vinci, mas para gente crescida, sofisticada e com sentido de humor: “De novo no avião, desta vez na direcção oposta. Tão depressa. Tanto. Uma semana em Barcelona, três encontros, seis tiros, um novo destino. O resumo da minha viagem.”

Depois deste pedaço de puro e vibrante entretenimento, a viagem de Yannis por um pedacinho de mundo e à volta de si mesmo trá-lo de volta a casa com um bagagem ainda maior, de memórias suas e dos outros com quem se cruzou. As dos outros são ruínas de pedra ou de tempo. As suas são um punhado de raízes recentemente descobertas que está a aprender a usar.

É hora de arrumar a roupa espalhada, e o final vai ser simples dialéctica. Conflito dramático na sua versão mais simples: duas personagens. Respira-se um ambiente de O Mundo de Sofia, mas (novamente) para gente mais crescida e sofisticada: “As pessoas são feitas do mesmo material que os acontecimentos, são iguais ao que acontece. Na vida não há ensaios. Tudo é de uma vez por todas.” Estamos às portas da Arcádia, lugar físico e mental onde o enigma se vai aclarar. Um mundo idílico, uma ideia de perfeição, uma impossibilidade onde converge, para ser reciclado, o lixo tóxico da História, mas também os sonhos que podem vir em forma de literatura.

Da Grécia contemporânea sabemos muito e pouco. Da literatura que tem produzido quase nada, e por isso é de saudar a edição deste Bar Flaubert, o segundo romance de Alexis Stamatis, originalmente publicoado no ano 2000. Não tratando estritamente da Grécia contemporânea, conta algumas vidas gregas em crise, mas crises diferentes daquelas que agora nos entram em casa todos os dias. Daquelas que pertencem a muito mais do que uma geração ocupada apenas em resolver a crise do dia.

Alexis Stamatis também perdeu fontes de rendimento: escreve menos em jornais e, mesmo sendo um dos autores mais traduzidos da actualidade - Bar Flaubert está publicado em sete países -, tem dificuldade em viver do que escreve. Mas a sua escrita, omnívora, vibrante e de uma desarmante sinceridade, tem capacidade para passar por cima destes tempos que parecem mortos.

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