Retrato de um rapaz flamejante

Este livro, dito de memórias, é feito de uma matéria frívola, apreendida à superfície do tempo, e de uma parada de nomes próprios a que a autor chama o Meio.

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©Enric Vives-Rubio

Este texto sobre as memórias de Eduardo Pitta (de 1975 a 2001) regurgitará de estrangeirismos. A tal nos convidam Um Rapaz a Arder e o seu discurso flamboyant. O nosso pequeno mundo das coisas literárias e da “vida” que lhes corresponde — geralmente grave, taciturno e melancólico — merecia ser interrompido por uma exclamação jubilante, à Boileau: Enfin, Eduardo vînt. Ele veio para introduzir as delícias da frivolidade, do artifício e do hedonismo, reinterpretados neste livro à maneira do parvenu. O seu autor veio de Moçambique, a 8 de Novembro de 1975 — essa data é o ponto de partida desta escrita memorialística —, mas a verdadeira “vinda” de que ele nos fala no livro, aquela que justificaria um triunfante enfin, é a que o leva a chegar ao Meio como outsider ou, como o próprio diz, como uma avis rara, tendo conseguido ver o seu primeiro livro editado numa colecção prestigiada, “para espanto dos capatazes da poesia”. O Meio — como ele lhe chama, sempre com maiúscula — é aqui entendido como uma categoria meio social, meio mundana, com as suas regras e códigos, à imagem de uma pequena sociedade de castas e classes, ou, mais modestamente, semelhante a uma pequena clique urbana. É preciso uma boa dose de imaginação sociológica e uma dilatada mania das grandezas para ver o Meio literário como uma entidade com a dimensão de nome próprio, como uma comunidade de pertença (mas só essa visão justifica frases deste tipo: “o Meio ficou estupefacto”, ou “o Meio deu pouca importância ao episódio”, ou “o Meio fechava os olhos”). Em boa verdade, Eduardo Pitta não engendrou o conceito de Meio por via da imaginação sociológica: é porque na sua visão do mundo tudo funciona como marcador privilegiado de classe e de status, e o ethos da distinção é o seu imperativo categórico.

Como é que ele segue os preceitos da distinção? Exibindo os seus hábitos como reivindicação de uma pose requintada, muito particularmente na descrição e nomeação dos hotéis e dos restaurantes que frequenta (há páginas e páginas que, autonomizadas, dariam para fazer um guia), sempre referidos com a familiaridade do habitué; ou informando, como quem ostenta um certificado, que viajou para Nova Iorque em primeira classe; ou servindo-se da concupiscência alheia como álibi para dizer ao leitor quais são os seus signos de distinção: “No regresso ao Estoril, mesmo em carruagem de primeira classe, os sacos da loja [da Pestana & Brito, onde Pitta tinha ido comprar roupa] foram olhados com perplexidade. Afinal, grande parte dos clientes P&B fugira para Espanha ou para o Brasil.” Estamos no momento inicial da chegada de Pitta a Lisboa, antes de ir buscar a mãe ao aeroporto, quando lhe leva luvas e um casaco comprido, que foi comprar de propósito, adivinhando que a “mãe não viesse completamente agasalhada”. Terno zelo filial, até aqui. Mas o que acrescenta num parêntesis, “se o tivesse provado antes [o casaco] não cairia melhor”, é zelo de outro tipo: pura estilização camp, da primeira à última página. Eduardo Pitta leu Susan Sontag e o seu ensaio sobre a sensibilidade camp, mas não é seguro que tenha visto nesse ensaio o espelho que mais fielmente o reflecte. A sua atitude camp é naïve e não deliberada. E este livro só impropriamente pode ser chamado um livro de memórias: é a construção de uma personagem que em todos os momentos se apresenta como desempenhando um papel no palco social e no dito Meio. Não se trata da vida teatralizada, à maneira de um Oscar Wilde ou de um dandy do século XIX — o que teria o charme decadente do tard venu. Trata-se antes do maneirismo e do exibicionismo encantadoramente snob do parvenu (deliciosa, aquela frase com que termina o périplo pela boa sociedade do Rio de Janeiro: “E depois havia o povão. Não frequentei.”), associados a essa sensibilidade camp que destrói toda a seriedade e acaba por ter um lado involuntariamente cómico, quando não desliza para o mau gosto. Veja-se, por exemplo, como relata o momento em que soube da morte de Fernando Assis Pacheco: “No dia em que morreu, eu estava em Madrid. Soube da notícia ao jantar, no Lhardy. Joana Serpa Pinto chegou à Calle de San Jeronimo atrasada como de costume. Tinha estado ao telefone com a mãe. Soube então que ele morrera, a ‘entrar ou a sair’ da Buchholz. Metade da perdiz ficou no prato.” Como diria Barthes, se esta frase fosse uma fotografia: o punctum está obviamente na perdiz e não no Assis Pacheco.

Uma vez iniciado no Meio, quando fala dele Pitta exercita de maneira incontinente o name-dropping. Não há acontecimento mundano-literário que não resulte em lista bem nutrida de nomes (ao falar das noites do Frágil, preenche 11 linhas seguidas com nomes próprios de quem lá viu). A maior parte dos acontecimentos relatados reduz-se a isso. Importante é saber quem lá estava porque esse é o índice mais evidente da distinção. Com a vantagem suplementar de esses nomes em estado de proliferação resultarem num extenso índice onomástico, que neste caso não é um elemento paratextual, mas o centro dissimulado do livro.

Desiluda-se, porém, quem tinha a expectativa de ver o Meio, ou parte dele, posto a nu por Um Rapaz a Arder. Qualquer pessoa com mais de 50 anos, que leu jornais, suplementos e revistas literárias, mesmo sem nunca ter ascendido ao Meio, é capaz de debitar com relativa facilidade o que Eduardo Pitta conta nas suas memórias. A única coisa que quebra a monotonia e a ausência de novidade são os pormenores apimentados à cronista social. Por exemplo: a embirração por Eugénio de Andrade dissimular na sua poesia a homossexualidade. Em comparação, Al Berto, esse sim, é outra coisa. E sairia do livro de Eduardo Pitta em grande triunfo se não tivesse “um umbigo do tamanho do mundo”. Fosse o mundo o dobro do que é, não faltariam para ele, segundo as nossas contas, dois umbigos. Não é seguro — há exemplos bastantes para concluir o contrário — que a memória de Pitta seja fiável. Dizer que “Carlos de Oliveira acedeu ao cânone nos anos 80 e 90” é um dislate (muito embora, a sua noção de cânone, quase tão presente como os templos gourmet, se aproxime mais de algo do tipo who’s who), como o prova o facto de muito antes disso Uma Abelha na Chuva fazer parte dos programas de ensino no Secundário. Como disparate é colocar Jorge Martins e Francisco Tropa numa lista de artistas impostos nos anos 80 pela “ditadura do gosto” de João Pinharanda e Alexandre Melo: o primeiro, bastante mais velho e com um percurso feito fora do país, já estava consagrado; o segundo, bastante mais novo, ainda não tinha começado. E assim sucessivamente, como diria o João César Monteiro. Seja-me, aliás, permitido corrigir Eduardo Pitta numa informação que me diz respeito. Diz ele que a morte de Luís Miguel Nava, em 1995, “fez soar as campainhas da crítica” e que só nessa altura “António Guerreiro, Jorge Fazenda Lourenço, Gastão Cruz e Maria Lúcia Lepecki, até então adormecidos”, escreveram sobre ele. E remata: “Pena terem levado tanto tempo a fazer essa descoberta”. Sem querer reivindicar coisa nenhuma, mas apenas mostrar como é selectiva e fraudulenta a memória de Eduardo Pitta (aqui, como em muitos outros momentos do livro), devo mencionar que escrevi sobre Rebentação em Novembro de 1984 e sobre O Céu Sob as Entranhas em 1989.

Mas estes lapsos e incorrecções ainda são o mal menor destas memórias. O problema maior é que elas nem fornecem matéria substancial para ser discutida: o que não é relato da vida mundana e de crónica social limita-se a apontamentos de reportagem para debitar nomes. O que o livro acaba por ter de mais profundo é a sua pele, isto é, a sensiblidade camp de um parvenu que fala do Meio como se fosse um etólogo, mas se revela afinal como o exemplar que mais se oferece a uma etologia da vida literária. 

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