De olhos nos olhos com Cristóvão Tezza

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O brasileiro transformou a sua experiência pessoal - é pai de uma criança com a síndrome de Down - num livro de sucesso.

Cristovão Tezza tem 56 anos, nasceu em Santa Catarina, viveu em Portugal, estudou na Universidade de Coimbra e é professor universitário de Língua Portuguesa em Curitiba. Na década de 1980, foi pai de uma criança com a síndrome de Down. Os traços biográficos não são mero adereço: a vida de Tezza está estampada em "O Filho Eterno", o romance que venceu o Prémio PT de Literatura de Língua Portuguesa e que a Gradiva agora publica em Portugal.
Graças às facilidades da tecnologia, é fácil conhecer o essencial sobre o escritor brasileiro e até entrevistá-lo por correio electrónico, sem, todavia, chegar a encará-lo ou, sequer, ouvir a sua voz. Ainda assim, esta foi uma entrevista de olhos nos olhos.

Comecemos pelo que é mais recente: como acompanhou os rumores segundo os quais o Prémio PT de Literatura lhe foi atribuído porque o júri soube que António Lobo Antunes não se deslocaria ao Brasil para recebê-lo?
A hipótese - que me chega pela primeira vez agora, por suas palavras - me parece tão delirante e absurda, ou ofensiva, que prefiro não comentar, em respeito ao prémio, ao júri e a todos os colegas concorrentes.
 

O narrador do livro manifesta sempre algum desencanto pelo ofício da escrita, que, diz, nem é profissão. O Cristovão Tezzaautor já perdeu a esperança ou os prémios conquistados por "O Filho Eterno" permitem-lhe estar mais perto do objectivo de viver da escrita?
São duas coisas distintas: o acto de escrever como uma escolha ética que se faz ao longo da vida - e é disso que fala o narrador do livro, sofrendo as consequências existenciais de sua opção, porque escrever é uma opção solitária e intransferível -, e a possibilidade prática de alguém viver do que escreve, que, afinal, é um aspecto biográfico que não tem nada a ver com literatura. No meu caso, jamais escrevi buscando prémios, mas viver da escrita é um sonho maravilhoso - e estou muito perto disso. Penso que em 2009 já posso largar a universidade, e os prémios do meu último livro ajudaram bastante, por abrir muitas portas no Brasil e no exterior.
 

"Trapo", o seu primeiro livro com algum sucesso, foi publicado em 1988, alguns anos depois do nascimento do seu filho. Até que ponto a existência desta criança foi importante para que, para usar as suas palavras, pudesse começar a escrever algo que prestasse?
Essa é uma questão imponderável. O tema do meu filho está ausente dos meus livros até eu decidir escrever "O Filho Eterno". Não se deve confundir, entretanto, o narrador do livro com o cidadão Cristovão Tezza. São entidades diferentes.
 

Não me referia a uma influência tão directa, mas à possibilidade de essa experiência radical ter alterado a percepção que o escritor tem do mundo, apurando-a...
Não sei dizer. É certo que a experiência marcante com meu filho afectou a minha vida emocionalmente; mas a percepção da realidade funciona, parece, em outro estrato da consciência, mais racionalizante. E o tempo quase sempre traz a sua dose de sabedoria, digamos assim - digo brincando que essa é a única vantagem de envelhecer.
 

"O Filho Eterno" trata de um caso particular, o nascimento de um bebé com a síndrome de Down, e, em parte, é ocupado pela descrição técnica, científica e psicológica da doença e da relação da criança com o mundo. Não é um livro de adesão fácil. Mas é um livro de sucesso. Qual é o segredo?
Penso que meu livro trata da relação de um pai com um filho especial e do pai com o mundo com intensidades semelhantes. O tema do filho especial é difícil, porque o discurso social que permeia o problema já está carregado de sentimentalismo - o que é mortal na literatura. Tive de quebrar esse modelo prévio. Não sei qual o segredo da minha literatura que se teria realizado de forma tão contundente neste livro para justificar seu sucesso. Eu diria que é um livro de dupla maturidade - da visão de mundo do escritor e do seu domínio técnico. Mas talvez seja uma resposta incompleta.
 

As semelhanças e coincidências entre a biografia da personagem do livro, o pai, e a sua biografia são inúmeras. Onde começa, neste caso, a literatura?
Tudo é literatura em "O Filho Eterno". A biografia é apenas material literário, como qualquer outro. A realidade no meu livro é percebida pelo olhar ficcional, que dá todo o sentido, a moldura e a estrutura da narrativa. Não escrevi nem uma biografia (que pressupõe um compromisso com a "verdade factual"), nem uma "confissão" - que teria o peso ensaístico de mero depoimento. Escrevi um romance, usando factos de minha própria vida.
 

Teria sido possível escrever "O Filho Eterno" sem ter vivido dentro desta história?
Certamente não. Mas, para dizer o óbvio, eu não teria escrito nenhum dos livros que escrevi se não tivesse vivido a vida que vivi.


Reformulo a pergunta: teria sido possível ficcionar algumas das sensações descritas no livro ou foi necessário tê-las vivido?
Um dos atributos da literatura é a capacidade de representar experiências alheias, não necessariamente vividas. Assim, seria possível escrever sobre o tema mesmo sem ter sofrido a experiência pessoal. Mas imagino que a experiência pessoal, em qualquer caso, dá uma intensidade emocional diferente ao texto. E o leitor percebe.


A "Folha de S. Paulo" citava, há dias, uma frase sua em que descreve este livro como "um exercício de crueldade". É também um exercício de desnudamento e auto-análise?
Não, "O Filho Eterno" não é uma auto-análise - é a representação ficcional de um longo processo que começa muito antes de o filho nascer e que fica em suspenso na última página. O narrador está permanentemente diante de situações-limite, numa intensidade que só a literatura pode dar. Se a vida fosse vivida com essa intensidade, morreríamos todos na segunda página. As eventuais auto-análises minhas como pai de um filho especial são apenas um problema pessoal; já a representação literária de um pai com seu filho tem uma dimensão diferente, porque "a mão que escreve" (usando uma imagem de [o escritor italiano] Roberto Calasso) tem a visão do conjunto já na primeira palavra escrita, enquanto na vida "real" não sabemos nada do minuto seguinte; estamos imersos no evento aberto da vida.


Escreve que "só a frieza do olhar de fora pode dar essa dimensão à vida". Até que ponto necessitou de se distanciar dos seus afectos para escrever "O Filho Eterno"?
Eu só consegui escrever esse livro por me distanciar de mim mesmo; precisei criar uma "personagem", um objecto narrativo que me desse inteira liberdade. E acho que consegui.


O narrador na terceira pessoa ajudou a consumar esse distanciamento?
Sim. Embora fosse, em tese, possível escrever o romance na primeira pessoa e manter essa distância, no caso a proximidade com a minha experiência seria forte de mais - eu poderia me deixar contaminar pela confissão. Mas é uma terceira pessoa "híbrida", que se abre frequentemente ao choque de uma certa autopercepção (o olhar da própria personagem sobre si mesma).


A mãe é uma personagem lateral. Escrever este livro também foi um exercício de egoísmo?
Se foi egoísmo ou não, isso está na esfera pessoal, que é irrelevante. Do ponto de vista literário, foi uma opção narrativa - não escrevi um romance do século XIX ou uma crónica social de família. "O Filho Eterno" tem o seu olhar centrado na questão da paternidade - é esse o tema que me interessou da primeira à última página.


Antes de saber da doença do filho, o narrador descreve a paternidade como "um outro nascimento". Um filho com uma deficiência é, de algum modo, um renascimento com defeito? Ou é apenas o rompimento do lugar-comum?
Talvez a última opção seja a melhor: o rompimento do lugar-comum, em toda a extensão da expressão - a metafórica e a existencial. Alguém condenado a não estar no lugar em que todos supostamente estão. O que é também uma metáfora adequada a todos os indivíduos.


Cristovão Tezza, o homem, sentiu em algum momento aquilo que Cristovão Tezza, o escritor, sentiu quando escreveu que um filho mongolóide é pior do que a morte?
A memória é um artifício literário: escolhemos o que lembramos, e o que lembramos é uma representação, isto é, um desenho feito de memória. Ao escrever, trinta anos depois, senti que aquela imagem duríssima fazia sentido no quadro romanesco.


O filho deficiente é o fracasso do pai ou apenas um modo de o fazer olhar para todos os fracassos da sua vida, da carreira literária à normalidade social, passando pela tentativa de se tornar piloto da marinha mercante e relojoeiro?
O surgimento do filho especial é um "gatilho" que detona o repensar de toda a vida do narrador. O olhar pessimista do narrador - melhor dizendo, impiedoso - é uma tentativa desesperada de não se deixar enganar em nenhum momento. É como se tudo que o mundo tivesse de lhe oferecer fosse a mentira, e ele luta para não aceitá-la nunca.


Alguma vez se sentiu, ao longo dos anos, como "uma teimosa personagem de William Faulkner, obedecendo a algum chamado ancestral que não compreende mas que precisa levar adiante por alguma força imemorial que está além da razão"?
É verdade, ainda que de forma "racionalizada". O narrador é o filho de uma geração turbulenta que aprendeu a desconfiar da razão. Claro que Faulkner está em outra esfera, infinitamente mais complexa, justamente porque é a da ficção - mas muito de seu imaginário literário transita por um arcaísmo mítico e incontrolável, inacessível à razão.


A "força imemorial" de que fala o narrador pode ser o sentido da paternidade? Ou o simples mecanismo da rotina é suficiente para normalizar uma situação tão dramática como aquela que é narrada?
Essa "força imemorial" que o narrador evoca, lembrando Faulkner, tem um sentido ideológico mesmo - a ideia de que há uma força mítica na vida, um "destino", contra o qual não há o que fazer senão deixar-se arrastar, como se as escolhas pessoais fossem inúteis. Mas observe-se que o narrador está rompendo com essa ideia mítica. A paternidade é o que decorre do olhar mais maduro dele, é uma construção pessoal e uma construção da cultura. A ideia de "rotina", no caso, representa apenas a natural amortização do tempo sobre as pancadas da vida, uma espécie de "espaço para respirar". Por si só, ela não cria nada.


A literatura surge, a dado passo, como forma de o pai-escritor "esquecer o resto". É esse, ou pode ser esse, o papel da literatura?
Obviamente, não; talvez justo o contrário. O narrador do livro é uma personagem de ficção vivendo conflitos e contradições muito fortes - não é um ensaísta a dizer verdades cristalinas aos leitores. O leitor de ficção sabe que também deve manter distância da personagem - que este não é um portador de "verdades", mas de experiências.


Descreve os bebés na maternidade como "condenados ao Brasil e à língua portuguesa". Dito assim, parece uma maldição.
A ironia é uma arma poderosa de reconhecimento do mundo. Do ponto de vista técnico, toda criança está "condenada" à língua de seus pais; ela não tem escolha. Mas, na situação específica em que a expressão aparece, a ideia de "condenação" não é absurda - não há muito do que se orgulhar do Brasil dos anos 1970. Talvez um cidadão português do mesmo período pensasse o mesmo de Portugal.


Tem uma opinião formada sobre o novo acordo ortográfico da língua portuguesa?
O acordo ortográfico é fundamentalmente um acto político, a manifestação expressa do desejo de manter oficialmente um poderoso elo de ligação entre os países lusófonos através de sua expressão escrita. É um acto simbólico importante. Sou a favor, acho que a comunidade oficialmente lusófona só tem a ganhar com esse gesto e que as mudanças são facilmente absorvíveis pelos usuários letrados dos países signatários.


Macunaíma, a personagem de Mário de Andrade, comenta que o Brasil tem duas línguas, aquela que as pessoas usam e aquela que vem nos livros. Isto, multiplicado por oito países, origina uma confusão babélica. A língua portuguesa une ou separa?
No caso do Brasil, a intenção política de unir sempre foi forte na História. Lutou-se sempre por manter as raízes lusitanas nas gramáticas oficiais. Mas línguas - ou os grupos humanos que as usam - são entidades naturalmente indóceis. Estamos conseguindo manter uma notável unidade de escrita, mas as línguas reais quotidianas têm cada uma o seu rumo. A "língua brasileira" é uma realidade inexorável, mas a ela se contrapõe, politicamente, o desejo de manter os laços com o mundo lusófono, o que acho muito bom.


A dado passo, referindo-se a Portugal, fala numa "gosma de Idade Média" que recobria o país em 1976. Ainda é essa a imagem que tem de Portugal?
A expressão fala de um Portugal de há 30 anos, e está vinculada à experiência histórico-emocional do narrador. Obviamente, hoje Portugal é um outro país, em todos os sentidos. Gostaria muito de rever esse país tão marcante na minha formação de escritor.


O livro tem também uma dimensão histórico-política, na qual perpassa uma sombra de desilusão e desistência. É assim que o homem Cristovão Tezza vê hoje o mundo?
Parece um paradoxo, mas não é - sou um escritor de inclinação pessimista, às vezes frio, alguém que escreve para não mentir; mas sou uma pessoa muito bem-humorada, de riso fácil, e tenho um temperamento optimista. Não se trata de uma escolha - é como se o temperamento fosse um traço genético inescapável. Há duas dimensões de percepção: no plano político objectivo, sou um optimista - acho de facto que, apesar de tudo, o mundo está melhor hoje do que há cinquenta anos. No plano da percepção pessoal, aquele que está no centro da minha literatura, o pessimismo é a forma possível de compreender a condição humana sem se enganar. Para mim, esse é um dos grandes temas de investigação ficcional da literatura do futuro.

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