“O vinho verde salva-me a vida”

Jonathan Nossiter escreveu um livro contra a uniformização do gosto do vinho. Gosta de alguns vinhos portugueses, mas acha que para se afirmarem no mundo não devem “falar a uma só voz”.

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Jonathan Nossiter (n. 1961), realizador do documentário “Mondovino”, uma comédia negra que é um retrato sobre o mundo do vinho desde o Paraguai à Nova Zelândia com especial atenção aos vinhos franceses, e autor do livro “Mondovino - Gosto e poder no mundo do vinho” (Sextante), esteve em Portugal para a sua apresentação. Pouco tempo antes de partir para uma viagem à região da Bairrada, recebeu o Ípsilon num hotel de Lisboa. Respondeu a todas as questões em português.

Nossiter é americano de nascimento, cresceu em Paris, trabalhou como escansão em alguns dos mais renomados restaurantes nova-iorquinos na década de 80, depois viveu um pouco por todo o mundo. É realizador de cinema e vive no Rio de Janeiro desde há três anos.

Qual foi a sua intenção ao fazer o documentário “Mondovino"?

Eu queria apenas fazer um filme de ficção, mas uma coisa diferente em que o vinho fosse o pretexto ... mas sem ser o objecto. Nunca me passou pela cabeça fazer um filme sobre o vinho, cheio de “enochatos”... eu apenas queria compartilhar aquele mundo com pessoas que estão fora dele. Queria falar com os vinicultores, que são pessoas mais interessantes do que os artistas pretensiosos ... os vinicultores têm uma sensibilidade de artista mas presa à terra. Fui fazendo o filme aos bocados ... quando havia dinheiro.

E no final foi reconhecido pelo mundo do cinema... mas não pelo mundo do vinho...

A partir de determinada altura o filme foi-se fazendo sozinho ... eu ia só atrás ... os agricultores davam uma ajuda com a sua energia. Mas toda a gente em Hollywood achava que eu estava a deitar a minha carreira para o lixo.

Sacrifiquei anos de vida, mas no final foi uma vitória doce.

Mas os críticos de vinhos ...

Os franceses queriam-me quase matar. E o Parker [Robert Parker, crítico da “Wine Spectator”, e por muitos considerado o maior crítico de vinhos do mundo] chegou a dizer que eu me comportava como um agente da Gestapo... eu, que sou judeu. Porquê atacar um marginal como eu? É mais um exemplo dos abusos de poder da nossa época que dominam em todos os sectores. O que eles não gostaram de ver foi que a realidade do mundo do vinho é a realidade do império americano... e que qualquer poder imperial é perigoso.

E sendo o vinho um dos espelhos da sociedade custou-lhes ver como eram... mas não perceberam que o filme não é uma condenação da América... eu sou americano... a tradição da América é o contrário de Bush e companhia... o filme é uma comédia negra sobre o “bushismo”.

E depois escreveu o livro, que tem apenas a ver com o gosto. Com o seu gosto?

O livro foi apenas um querer partilhar com o leitor algumas opiniões sobre o gosto do vinho. Não quero cair num relativismo pós-moderno, infantil... A minha experiência de trinta anos no mundo do vinho não me dá autoridade, mas dá-me uma opinião pessoal para provocar o leitor, que tem de procurar o seu próprio gosto. A época que vivemos procura esmagar a escolha pessoal. Estamos no mundo do “Admirável Mundo Novo”. Huxley antecipou um mundo onde voluntariamente nos estamos a meter... A única coisa boa que vai sair desta crise económica global em que estamos, é a possibilidade de fugir desse mundo Huxley.

De fugir também da uniformização do gosto?

Claro. De fugir desses vinhos “macdonald's”, encorpados, grossos, alcoolizados, que seduzem facilmente, sem acidez. Mas um vinho ácido prepara as papilas para receber outros gostos, e isso é que não nos querem deixar fazer. E o muito álcool dos vinhos actuais, entorpece-nos o gosto, depois de dois copos já bebemos tudo.

A crise vai fazer com que as pessoas larguem os alimentos “mágicos”, que se produzem de um dia para o outro... são necessários alimentos com memória, os alimentos são o veículo de uma história... a história do lugar que os produziu. O que nos vinhos se chama o “terroir”.

Mas isso não poderá ir um pouco contra a ideia de modernidade, de evolução tecnológica nas indústrias agro-alimentares?

Foram os profetas do “marketing” que inventaram essas ideias, por exemplo nos vinhos, de um “vinho sujo”... são balelas. As técnicas modernas servem para realçar as qualidades, não para as transformarem ou uniformizar. Quando defendo a ideia de “terroir” não tenho uma atitude conservadora, antes pelo contrário, é progressista.

Passa-se o mesmo no cinema, acabei de fazer um filme no Rio com a Charlotte Rampling e outros grandes actores... Utilizei uma câmara digital do mais sofisticado que há, queria aproveitar ao máximo a tecnologia moderna. Fiz um filme de baixo custo, com sete pessoas... a técnica ajudou-me muito a realçar coisas que de outra forma me custaria muito mais.

Conhece os vinhos portugueses?

O vinho verde salva-me a vida todas as semanas. Compro umas garrafas num supermercado no Rio, por baixo preço. É um vinho fabuloso, fresco, ácido... Completamente ao contrário desse vinho uniformizado que você pode beber em qualquer lugar do mundo e por vezes por preços loucos, sem haver razão nenhuma para isso.

Gosto também dos vinhos da Bairrada, vinhos bem-feitos utilizando as técnicas modernas mas sem lhes tirar as características intrínsecas. Mas no avião vim a ler uma publicação em que alguém responsável por alguns vinhos portugueses dizia esta idiotice: “O vinho português tem que falar a uma só voz para conquistar o mundo”.

Isto é o mais errado que se pode dizer, isto é dito para agradar aos críticos ingleses e alemães. Mas depois as pessoas acreditam.

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