O espelho de Hipátia

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Maria Dzielska situa o nascimento de Hipátia bem antes do convencio-nado, em 355, o que faz com que morra aos 60 anos

Tornou-se uma lenda não pelo que fez em vida mas pelo que lhe fizeram na morte. É a protagonista do filme "Ágora" e de um estudo biográfico acabado de editar em Portugal. Duas visões de Hipátia de Alexandria, uma mulher que acreditava em saber mais.

Viver depressa, morrer jovem e deixar um belo cadáver faz a lenda desde os Antigos. Alexandre já era Grande aos 20, morreu aos 32 e ninguém o imagina feio. Tem sido assim com muitos homens e foi assim com Hipátia de Alexandria, uma das raras mulheres da Antiguidade que sobreviveu até nós.

A Hipátia da lenda viveu depressa, morreu jovem e teria deixado um corpo de Afrodite se não o tivessem desfeito. As versões sobre a sua morte alimentam há séculos enciclopédias, romances, poemas e ensaios. É mais ou menos consensual que, no ano de 415, seguia na sua carruagem pelas ruas de Alexandria quando uma multidão de cristãos a agarrou. A partir daqui os relatos divergem: arrancaram-lhe cabelo, braços e pernas; esfolaram-na com conchas de ostra; tiraram-lhe a carne com cacos de cerâmica. Depois, os relatos voltam a convergir: o que restava do corpo foi levado para uma igreja e queimado.

Eminente matemática, filósofa e professora, Hipátia vingou na História não tanto pelo que fez em vida mas pelo que lhe fizeram na morte - e em nome de quê.

Em "Ágora", o filme de Alejandro Amenábar actualmente em exibição, Hipátia é assassinada em nome da supremacia da fé - de uma fé sobre as outras e sobre os ateus. Em que acreditas?, perguntam-lhe os seus perseguidores cristãos antes de a desfazerem. No conhecimento, responde, firme.

O que Amenábar vê na morte de Hipátia, e devolve ao espectador no fim desta intolerante década de 2000, é a própria génese da intolerância religiosa.

Já a historiadora polaca Maria Dzielska, autora de "Hipátia de Alexandria" - um estudo biográfico que a Relógio d'Água acaba de traduzir, coincidindo com a exibição de "Ágora" -, sustenta um outro retrato: o de uma mulher devotada ao saber como caminho para o divino, não-pagã e eventualmente simpatizante do cristianismo, que morreu por razões políticas, no contexto de guerras pelo poder.

E essa Hipátia martirizada já não é "o sopro de Platão num corpo de Afrodite", porque não tem os 25 anos que parte da lenda lhe dá, nem sequer os ainda-belos 45 que Amenábar talvez lhe dê no momento da morte. Maria Dzielska situa a data do nascimento de Hipátia bem antes do convencionado, em 355, o que faz com que a sua Hipátia morra aos 60 anos; uma verdadeira anciã, à luz da época.

Mulher casta, bruxa pagã

Alexandria era então uma das praças-fortes do Império Romano do Oriente, recentemente convertido ao cristianismo. A fé monoteísta impunha-se, triunfante, sobre os cultos politeístas da tradição grega fundida com a tradição egípcia, que durante séculos tinham convivido. Mas era um triunfo agitado por combates intestinos de cristãos contra cristãos, para além do conflito com os judeus e os pagãos.

É neste mundo que Hipátia nasce, filha de Theon, um grande matemático, e "não há dados que indiquem que alguma vez tenha deixado a cidade", escreve Dzielska. "Alexandria era universalmente admirada", "um universo fechado, completamente formado, acabado e enquadrado, que podia satisfazer por inteiro as exigências espirituais de Hipátia" - "o Museion, a biblioteca, os templos pagãos em declínio, as igrejas, os círculos de teólogos, filósofos e retóricos, as escolas de matemáticas e medicina, uma escola catequética e um colégio rabínico."

Mas é no espaço privado de sua casa que Hipátia se torna uma mestre renomada de filosofia neoplatónica, astronomia e matemática. Os seus muitos alunos vêm de várias regiões do império e pertencem às elites abastadas e cultas. Vários virão a publicar obras e a assumir cargos na hierarquia política e religiosa. Muitos são cristãos.

Sendo que nenhum dos trabalhos de Hipátia sobreviveu, muito do que hoje se sabe sobre ela vem da correspondência dos seus discípulos. Parece unânime a devoção que lhe tinham, cultivada ao longo de anos, não apenas como mestra mas como exemplo de vida recta, justa e casta.

Os relatos insistem que terá morrido virgem, e Maria Dzielska faz questão de corroborar, como se a virgindade acentuasse a inclinação de Hipátia para o divino. Sabe-se que quando um dos discípulos enamorados se atreveu a declarar o que sentia, Hipátia lhe deu um pano manchado com o seu sangue menstrual. Dzielska interpreta isto como uma terapia de choque. O gesto "repugnante" mostrou ao discípulo que a beleza não está aprisionada num corpo, nem pode ser apreendida através dele, elevando-o assim a outro nível de busca.

No filme de Amenábar, esse discípulo transforma-se em Orestes, futuro prefeito de Alexandria.
É a disputa entre o prefeito Orestes e o patriarca Cirilo que há-de conduzir à morte de Hipátia.

O ambicioso Cirilo, que a Igreja há-de santificar, tinha uma guarda-de-honra que E.M. Forster descreve (no seu "Alexandria: a History and a Guide") como um "exército negro selvagem", "humano apenas no rosto". As fontes "descrevem-no como um homem impulsivo e ávido de poder", cita Maria Dzielska.

No duelo que opôs Cirilo - a autoridade religiosa - a Orestes - a autoridade política -, Hipátia tomou o partido de Orestes. A tese de Dzielska é que foi a partir desse momento que os partidários de Cirilo começaram a propagar a acusação de que Hipátia era uma bruxa pagã. Até que um bando de cristãos fanáticos a massacra.

Vista de agora

O iluminismo recuperou Hipátia como uma heroína face às trevas da igreja. Há versões pró-cristãs em que Hipátia se converte e é baptizada. As feministas tomaram-na como símbolo. Cada um vê nela o que precisa.

O que Maria Dzielska tentou fazer no seu estudo biográfico foi cotejar fontes históricas e literárias, mas centrando-se na correspondência dos discípulos.

E a partir daí, que retrato é possível fazer de Hipátia?

"Foi antes de mais, uma filósofa e uma cientista", responde ao Ípsilon, por e-mail. "Como o seu pai Theon, devotou as suas paixões científicas ao estudo dos matemáticos alexandrinos eminentes: Diofante, Apolónio de Pérgamo, Ptolomeu. Mas nenhuma das suas obras científicas sobreviveu, tudo o que conhecemos são os títulos." Embora historiadores de ciência defendam que "alguns comentários feitos por Hipátia podem ser encontrados em escritos de Diofante, Apolónio e Ptolomeu e em comentários posteriores às suas obras". Ou seja, não se terá perdido tudo.

Quanto aos trabalhos filosóficos, "não temos provas, nem sequer vestígios dos títulos", diz Maria Dzielska. "Muito provavelvelmente ela não era uma filósofa original, criativa, mas apenas uma grande erudita do pensamento platónico clássico e tardio. A filosofia era, acima de tudo, o seu caminho de vida para a assimilação do divino. Transportava a visão neoplatónica do mundo e passou-a aos seus discípulos, ensinando-lhes como alcançar altos níveis de virtude ética, e chegar mais perto da perfeição da vida divina."

Enquanto "mulher-filósofa" e "professora inspirada de matemática e filosofia", Hipátia "desempenhou um importante papel na história da cultura e do saber académico da Antiguidade Tardia, mas graças à lenda literária as pessoas sentem-se mais fascinadas pelo seu destino trágico, que continua até hoje a inspirar criação literária", lamenta a investigadora polaca. "É vista como um símbolo de uma civilização desaparecida, uma mártir pagã, a última dos Helenos, etc., embora a Hipátia histórica não tenha aspirado a ser uma heroína pagã, uma figura central nas transformações históricas e nas vocações. Estava liberta de qualquer inimizade em relação ao cristianismo. Fosse qual fosse o politeísmo que praticava, provinha mais de um sentimento em relação à magnífica tradição grega do que da devoção. O seu helenismo era de natureza cultural e não religiosa. Era a verdadeira filha da grande cultura grega de Alexandria."

Maria Dzielska não viu o filme de Amenábar, mas, do que sabe, receia que "apresente Hipátia como uma vítima da última batalha para salvar o mundo perfeito da harmonia e da religião gregas da selvajaria da nova fé cristã", quando "depois da morte de Hipátia, o intelectualismo e o saber académico gregos não morreram em Alexandria e no Império Romano".
Amenábar faz desse momento o fim da cultura humanista e o começo das trevas. Dzielska discorda, argumentando que os sábios helenistas continuaram a trabalhar em Alexandria por vários séculos, depois de Cirilo ter vencido o seu inimigo político e de a atmofera ter acalmado: "A vida intelectual na cidade tornou-se singularmente vigorosa, com toda uma dinastia académica, numerosos filósofos do neoplatonismo religioso, comentadores de Aristóteles, retóricos e gramáticos."

Com o seu próprio exemplo, Hipátia "ensinou aos estudantes que a sabedoria que encoraja um estudo puro do divino também pede uma perfeição supracorporal, uma independência das matérias do mundo, uma divinização do homem", diz Dzielska. E essa Hipátia, uma mulher erudita e "divina na sua moderação auto-imposta e na sua castidade, na sua vocação para ensinar e na sua busca de Deus", diz, "pode também ser vista hoje como um modelo de vida dedicada à verdade transcendental".
Será a Hipátia dos crentes religiosos.

No filme com que encerra esta década, Amenábar viu outra Hipátia, a dos que continuam a querer saber, além da supremacia de uma fé - em relação às outras e em relação aos ateus. Não é um filme sobre Alexandria na viragem do século V. É um filme sobre agora.

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