Três séculos: um só romance

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"O Viajante do Século" tem a ambição de nos pôr a olhar para um espelho com o passado lá dentro. Conversar com Andrés Neuman é viajar a grande velocidade

Alemanha, início do século XIX: pela cidade imaginada de Wanderburgo passa um viajante sem rumo definido que decide parar na cidade encantado com o som do tocador de realejo na praça central.

Hans deixa-se ficar. Frequenta o principal salão literário da cidade onde se discute todas as sextas-feiras filosofia, política, literatura e um sonho europeu que sabemos hoje se frustrou. No meio das acaloradas discussões conhece a filha do dono da casa, Sophie. Apaixonados, propõem-se traduzir juntos o melhor da poesia de toda a Europa.  

Andrés Neuman (Buenos Aires, 1977) é autor de vários livros de contos, e de três romances, dois dos quais finalistas do prestigiado Prémio Herralde. "O Viajante do Século" (ed. Alfaguara) é o seu livro mais ambicioso. E foi com ele que passou de promessa a talento consagrado entre a nova geração de escritores nascidos na América Latina. Prémio Alfaguara em 2009, "O Viajante do Século" foi ainda eleito pela crítica como o melhor livro publicado em Espanha no ano passado. Conversar com Andrés Neuman é viajar a grande velocidade. Sem travões. Pela história da civilização europeia dos últimos 200 anos e pelos caminhos do romantismo.

Por que se detém de repente este Hans, o viajante, a meio do caminho, contrariando logo nas primeiras páginas uma das epígrafes do romance roubada a Georges Steiner: "Os vegetais têm raízes, as mulheres e os homens têm pés"?

A culpa é de Franz Schubert: os meus pais eram os dois músicos e eu cresci a escutar "A Viagem de Inverno", um ciclo de canções românticas que Schubert compôs a partir de poemas de Wilhelm Müller. Estes 24 poemas formam um conto em que de repente um homem diz: "Boa noite", sai de casa e atravessa a paisagem sem saber para onde o levam os seus passos, até que encontra um músico feliz com o seu realejo. Chegámos a Wanderburgo.

Que é uma cidade imaginária, mas onde o paralelismo com a geografia da Alemanha é total.

Quis que ao detalhe se contrapusesse a fantasia. Hans vive como num sonho, nesta errância algures entre Dessau, cidade onde morreu o poeta Müller, e Berlim, uma cidade política. Quis manter uma atmosfera estranha na relação entre o viajante e as pedras e ruas desta Wanderburgo inventada. Como se estas se montassem e desmontassem do dia para a noite. Uma cidade conjectural como as que imaginou Italo Calvino, já no século XX mas com a aparência exacta de uma cidade típica do centro da Europa no início do século XIX.

Mas "O Viajante do Século" está longe de ser um romance histórico...

Sim, porque desobedece às regras do género. Há um salto ao século XX para contar esta história que decorre no século XIX e esse salto do tempo nunca ocorre no tradicional romance histórico. "O Viajante do Século" está cheio de recursos que pertencem à vanguarda literária do século XX: Franz Kafka, John Cheever. Há descrições quotidianas que lembram Raymond Carver, monólogos interiores que recordam James Joyce, a construção da cidade aponta a Kafka, o espaço visual é cinematográfico, os diálogos são radiofónicos. Nos encontros do salão literário, que são em si uma ideia pesada, solene, os meus personagens, por exemplo, não falam um de cada vez, interrompem-se em acções e em pensamentos, distraem-se, voltam atrás, seguem em frente. O que acontece se colocarmos um helicóptero dentro de uma carruagem: o helicóptero fica parado ou a carruagem desata a voar? Quis perceber se a partir de fragmentos breves e velozes, se podia manter uma atmosfera lenta. Um híbrido do romance clássico com a narrativa dos nossos dias, nos planos estilísticos, político e estrutural.

E assim amarra os séculos XIX e XX. Mas também escreve que "o passado serve de laboratório para analisar o presente". E o nosso presente é o século XXI. Ao qual pertencem os seis anos que levou a escrever este romance.

A minha ideia nunca foi reconstituir o passado, mas sim detectar conflitos que, tendo-se iniciado na primeira metade do século XIX, se instalaram até hoje na nossa sociedade. Quis deixar bem à vista o que o passado pode ter de revelador, os sinais que deixa ao futuro que infelizmente se acabam por confirmar. A decepção com os projectos revolucionários começou com o espanto dos intelectuais pela forma como Napoleão exercia o poder. Daí passámos às utopias do comunismo impossíveis de concretizar e que arrastaram na sua queda desilusão e frustração em milhões de pessoas.

Em segundo lugar, há este paralelismo entre a revolução industrial e revolução digital. A máquina a vapor e o comboio mudam o conceito de espaço e tempo. Muda o conceito de lugar, o homem passa a deslocar-se mais rapidamente do que a natureza. E isso repete-se com a revolução digital que hoje vivemos. E tudo isto ocorre não porque a história se repita mas antes porque o início do século XIX é na minha opinião o início do presente. Cai por terra, pelo menos para mim, a ideia de que a história é veloz e anda mais depressa do que o homem.

E temos Sophie, uma mulher emancipada antes do tempo, que rompe barreiras em nome de um amor romântico. "O Viajante do Século" é um elogio ao romantismo no seu carácter revolucionário?

A história romântica entre o viajante Hans e a jovem Sophie tem duas metades bem diferentes: num primeiro momento tudo é subterfúgios, olhares que se cruzam e se desviam com pudor, movimentos quase imperceptíveis de tecidos esvoaçantes, toques de pele subtis. Estamos no universo de Jane Austen. E, de repente, esses dois seres românticos tiram a roupa e descobrem que têm estrias, barriga, peitos descaídos, sémen, sujidade.

Acaba o idealismo em torno dos corpos e o romance torna-se contemporâneo na forma como é contado. Fala-se de menstruação, algo muito pouco romântico. Tentei mostrar o que se poderia passar dentro da carruagem de Madame Bovary que percorre Paris com as cortinas corridas. No romance de Flaubert sabemos que a carruagem leva o amante lá dentro, mas nunca o vemos.

Mas mesmo que lá dentro se pratique coito anal, a ideia era manter o nível poético. Tentei que na prosa não se distinguisse entre uma discussão filosófica sobre Kant, uma tradução de Bocage e uma descrição de uma qualquer axila.

E quando não estão a fazer amor, Hans e Sophie traduzem poesia.

A tradução é também um dos temas essenciais deste romance: a forma como traduzimos o passado no tempo presente. A história de amor entre Hans e Sophie demonstra como o amor se pratica traduzindo: gestos, silêncios, as tuas palavras através das minhas palavras. Toda a tradução é um acto de amor.

Hans e Sophie têm o objectivo ambicioso de traduzir toda a poesia europeia de todas as línguas: esta ânsia de tudo traduzir antecipa o diálogo de culturas, a ideia de uma Europa de civilizações e até de ferramentas como o Google. 

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