As vozes interiores de Maria Dueñas

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Maria Dueñas é uma estreante na ficção: até escrever O Tempo entre Costuras e se transformar num sucesso transatlãntico era apenas uma filóloga da Universidade de Múrcia

Uma modista, uma Espanha descosida numa Europa rota, e um livro, "O Tempo entre Costuras", escrito por uma filóloga, Maria Dueñas, quase sem tempo agora, nem para autógrafos. E tudo numa dúzia e tal de meses, um fenómeno. Uma história onde a História é muito menos importante do que as pessoas dela, contada a quente, entre Tetuán, Madrid e o Estoril

Até há um ano e picos, Maria Dueñas era só uma filóloga da Universidade de Múrcia, virada para os livros dos outros. Foi em 2009. Agora tem milhares de pessoas viradas para o livro dela, uma história de aventuras e desventuras e um fenómeno de vendas que gosta de ver como um golpe da "sorte".

"O Tempo entre Costuras" (Porto Editora), que obrigou a novíssima escritora espanhola a uma roda-viva de sessões de lançamento dos dois lados do Atlântico - uma delas há dias em Lisboa, quando conversou connosco -, é o reencontro com Tetuán, a antiga capital do Marrocos Espanhol, nome tão frequente nas conversas da família como esquecido nas memórias do seu país. Daí a ideia.

"Para mim ouvir o nome da cidade era uma coisa natural. Mas a seguir dei-me conta de que para o resto das pessoas não era tão comum. Uma parte da nossa história está muito esquecida", diz, sem ar de queixa, porque o que quis foi resgatar uma cidade "onde, a meias com os militares, borbulhava também uma sociedade como qualquer outra". Resultado: um "boom" de vendas, desde que uma editora (a Temas de Hoy) imprimiu timidamente uns 3.500 exemplares, para ver o que dava. O que deu já vai em mais de meio milhão de livros vendidos em 20 países e 12 traduções, e fez a autora deixar por instantes a academia e os livros dos outros.

"Prefiro pensar que tudo isto foi um golpe de sorte", diz, a sorrir, confrontada com o facto de estar a beliscar tiragens como as de Pérez-Reverte, que o "El País" considerou o escritor mais completo da língua castelhana.

Um saltinho à história, que na edição portuguesa tem 628 páginas. Sira cresce num bairro pobre de Madrid, a costurar, a alinhavar, a pespontar, entre linhas, botões, e pachorrentos gatos ao sol, pois ainda não se ouve Primo de Rivera nem chegou 1936. Um dia troca um rapaz generoso por outro de brilhantina, que a deixa, em Marrocos, abandonada, roubada e cravada de dívidas. E com um bebé que não nascerá. Refaz a vida em Tetuán, onde se torna uma estilista de referência e amiga da inglesa Rosalinda, que a convence a voltar à capital espanhola e a espiar para os serviços secretos britânicos - acabara a guerra civil e começava a mundial, e era preciso evitar que a Espanha se voltasse para Hitler, a quem Franco, como se sabe, devia favores. A aventura também passa pelo antigo Hotel do Parque, no Estoril, nesse tempo cheio de gente de gabardinas de golas levantadas. No fim, depois de escapar a um atentado congeminado por um português, o Silva, amigo do volfrâmio da Panasqueira e dos alemães, e de provar o bacalhau à Brás, casa com um espião a sério, Marcus.

Mulheres maiores num mundo menor

Assim resumida, a obra parece uma ficção entre colchetes e Mata Haris, uma marroquinaria com incursões na política. Mas não: é uma história de pessoas à margem da História, uma história de sobrevivências, no feminino, no pano de fundo de duas guerras, servida por uma escrita vinda de dentro, sem moldes, sem momentos lassos, sem engasgos, sem toleimas de estilo, e, é preciso dizer, sem rendilhados, que escorre e que se cola aos olhos.

"As personagens vivem num momento histórico e num mundo tão hostil, tão duro, tão difícil, que têm de desenvolver entre eles uma certa empatia para poderem ultrapassar essas condições; para poderem sobreviver. E por isso vão-se apoiando umas às outras", explica Maria Dueñas.

Quer dizer, tudo o que se passa à volta é um "cenário", um pano de fundo de cinzas e Guernicas que deixa em destaque o branco dos jaiques das mulheres, a alma colorida de Candelaria, a matrona da pensão de Tetuán, a alegria, o riso, o porte sedutor do monte de ossos que é Rosalinda, a amante de Juan Luis Beigbeder, o alto-comissário do Protectorado que mais tarde se tornará uma das vítimas de Serrano Suñer, o Cunhadísimo do Generalíssimo, figuras menores, muito menores, de uma epopeia que levou "uns quatro meses a imaginar, um ano a escrever e mais uns meses, à procura de fios soltos, a burilar".

Como uma modista da prosa, não? Maria Dueñas, dentro de uma blusa de gaze cinzenta, ri-se. "Mais ou menos. Sim, cosi, fiz pespontos, essas coisas. Mas o que fiz mais foi seguir as minhas vozes interiores, os meus palpites".

Não estamos portanto diante de um pretensão ensaística nem de uma trama complexa de interesses inconfessados. "Não sei nada de costura, tão presente aqui. Nunca pretendi escrever sobre História, porque não sou especialista. Nem sequer sobre espionagem, teria de me ter preparado de outra maneira". A única preocupação que teve foi que o cenário não esmagasse nem os sons nem os actores.

Ouve-se Tetuán, o muezin a dizer o fayer, a oração da manhã; vêem-se mouras de jaiques e de babuchas, e mouros de cafetãs, as damas da elite estrangeira, ladys e Fraus, de veludos, chifons e organzas; sente-se o cheiro a suor e a açafrão dos bazares, o Nina Ricci das senhoras, o aroma do chá de hortelã; quase trincamos os pinchitos e o tajine de borrego. Nenhum acontecimento político, nem a guerra na península, nem os roncos de canhões, nem mesmo o chato do comissário Claúdio Vásquez, bulem com a serena luta da inocente Sira ou com os expedientes da amiga Candelaria.

Pressente-se até um certo ambiente de Casablanca, embora pareça que "só os jornalistas dão por isso".

"O que essencialmente procurei foi manter o equilíbrio, de maneira que a História não fosse até ao fim um lastro, uma coisa pesada, que não entorpecesse a ficção", diz.

Por tudo isto, "O Tempo entre Costuras" tornou-se um livro tão lido por mulheres como por homens. Por elas, pela força que se desprende das protagonistas, determinadas; por eles, porque "gostam de entrar no mundo das mulheres, por coisas que não conhecem; abre-se-lhes uma janela, por exemplo sobre o que elas pensam e como se relacionam entre si".

E também pelos seus, agora, pares da literatura castelhana, como Reverte, um criador de heroínas ["A Rainha do Sul", entre outros], que lhe mandou uma "tarjeta" de parabéns e fala do livro aos amigos e aos jornalistas, ou Matilde Asensi, a novelista de Alicante; e ainda pela crítica, que continua a estender-lhe tapetes vermelhos, vá onde vá, em Madrid, em Bogotá, no México, em São Paulo.

O que vai ser da filóloga, da académica, natural da Mancha, como Dom Quixote? "Continuar a escrever. Pedi dois anos de licença na universidade." Escrever o quê? "Propuseram-me que escrevesse uma segunda parte. Mas não, não vou fazer isso. Até porque os anos que se seguiram foram muito aborrecidos. Vai ser uma coisa totalmente diferente, uma ficção com distintos momentos das relações entre a Espanha e os Estados Unidos, outra área muito desconhecida. Mas com menos História."

E em casa, a família deixa-a escrever em sossego? "[Ri-se] Ai, não!... A Bárbara e o Jaime!... Mamã, deixa esse livro e anda connosco..."

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