Sou um apaixonado pela Europa, mas não da Europa que hoje temos

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Peter Handke quer fugir da História. É a única hipótese de futuro diz o argumentista de “As Asas do Desejo”

Em 2006 a vida de Peter Handke (Áustria, 1942), mudou. De autor célebre, eterno candidato ao Nobel, responsável por romances como "A angústia do guarda-redes no momento do penalty" (1970) ou "A Tarde de um escritor" (1987) ou de registos biográficos onde relia a sua história, e a do seu país, como em "Wunschloses Unglück" ("Mágoa para além dos sonhos", 1972), retrato pungente da sua mãe, mulher infeliz que se juntou ao padrasto a quem Handke foi buscar o apelido, ele que nunca conheceu o pai, passou a "ovelha negra" da Europa ao ser acusado de se colocar ao lado de Slobodan Milosevic aquando do julgamento no Tribunal Penal Internacional pelo massacre de Srebenica.

De nada serviu que Handke tivesse já longa carreira na literatura, ele que começara, tal como Elfriede Jelienek (Nobel em 2004, autora, entre outros, de "A Pianista"), a insurgir-se contra autores que eram colocados num panteão estético, como Peter Weiss ou Gunter Grass, defendendo um outro princípio narrativo: o de um texto que pusesse em causa a ideia de verdade, através de uma leitura própria da noção de realismo, uma que incluísse a construção de contextos sociais, políticos, históricos e filosóficos.

Ao longo de uma vasta carreira, que o levou a escrever a História de uma Europa em construção a partir de microcosmos tidos por angustiantes, a escrita de Handke apresentou-se sempre como um objecto em evolução, onde o detalhe pode sempre conter todo o contexto.

Havia já escrito argumentos para filmes, como "As Asas do Desejo", de Wim Wenders (1987), ou peças de teatro como "Insulto aos espectadores" (1966), "Kaspar" (1967) ou "A Hora em que não sabíamos nada uns dos outros" (1992) - e que em Portugal foram feitas, respectivamente, por Mónica Calle, João Garcia Miguel e José Wallenstein - e mais livros de viagens e relatos políticos.

"Mas de nada valeu tudo isso. Fui só o idiota que tomou um dos lados da história", diz-nos. Peter Handke aprendeu a ler todo o seu trabalho a partir da imagem que dele construiram e, por entre os prémios que deixou de receber, as homenagens que foram canceladas e as peças retiradas de repertórios de teatros, descobriu que o melhor de se ser escritor é poder começar tudo de novo. Foi disso que falou, quando o encontrámos a meio das sessões do Lisbon & Estoril Film Festival, onde foi júri de uma das secções, pela segunda vez. Retrato de um homem que não gosta de pensar em si como um autor que nunca vai conseguir escrever poesia. Ou pelo menos nunca, diz ele, será tão bom como Bob Dylan e Leonard Cohen. "Esses sim sabem o que é escrever".

No seu discurso, o que mais emociona é o facto de nunca concluir uma imagem, ou um acontecimento, de modo definitivo. Isso estará, de certa forma, ligado à sua própria História, e à impossibilidade de dizer que as coisas têm simplesmente um lado.

É uma bela ideia essa, sim, mas não posso analisar a minha própria vida. Posso fazê-lo, acho, em relação ao meu trabalho, mas mesmo assim seria sempre a minha perspectiva, nunca o meu trabalho. Não sei ser espectador ou leitor da minha obra. É possível que seja como diz, sim. Talvez o meu instinto seja mais forte do que a minha história. Por vezes o instinto é mais universal que a própria História. Essa é sempre pessoal, ou existe num plano que é primeiro pessoal e, apenas de vez em quando, universal. Por exemplo, sou incapaz de dizer que uma personagem é boa ou má. Mesmo o mau é bom e eu não sei escrever, nomeadamente teatro, de outra forma, ou sem essa dualidade.

É semelhante com os romances?

Sim, mas gosto de pensar que sou um prosador, mais do que um romancista. Gosto de ser alguém que conta. Quando escrevo peças, são peças épicas mas não como [o dramaturgo alemão Bertolt] Brecht as definiu. Eu procuro conciliar o drama com a epopeia, mas essa é a minha natureza.

Um pouco como entender que a pequena história faz a grande História?

Às vezes acho que sim. Muitas vezes acho que me aproximo dessa ideia, mas a grande História não é senão a pequena história disfarçada. Para mim, pelo menos. Na última peça que escrevi ["Der Grosse Fall", apresentada em Maio em Salzburgo] procuro juntar as duas, a história da resistência da minoria eslovena na Áustria durante o terceiro Reich. É a primeira vez que o faço.

Falamos dos autores como guardiães de uma certa verdade, à qual nos dirigimos e na qual nos projectamos. Ficar no detalhe, não criar um contexto mais vasto do que uma imagem, um certo ponto, é um meio de dar forma a essa ideia?

Sim, mas é preciso sermos atentos às contradições. Isso é verdade mas não é menos verdade que eu não tenha produzido grandes ideias. Às vezes essa grandes ideias estão nos detalhes. E essa construção, ou desconstrução, como se tornou moda dizer, pode ser apenas entrevista no conjunto do trabalho, escondendo um grande amor, ou um grande ódio.

Que, normalmente, são uma e a mesma coisa...

Sim, por vezes sim [risos]. Para mim é mais frequente o amor que a cólera, mas esses são os meus dois grandes motores.

São motores do autor ou do homem?

Tenho dificuldade em me considerar apenas como autor. Por exemplo, no caso das peças de teatro, elas foram sendo feitas um pouco por acaso, contra a minha própria natureza. Achei sempre que a minha natureza se caracterizava por uma esquizofrenia e que habitavam diferentes vozes em mim. Muitos olhares contraditórios que, para o teatro, eram bastante convenientes. Mas, talvez por isso, e porque nenhuma personagem é alguma vez completa, nunca me considerei mais do que um autor de teatro ocasional, quando não mesmo anedótico.

Mesmo uma pessoa não é nunca uma pessoa completa...

E eu certamente não sou um autor completo. Não me considero sequer como ser ideal e nem mesmo como uma pessoa forte. Sou, muitas vezes, muito fraco.

Essa é uma imagem que construiu para si a partir dos olhares exteriores?

Não, isto é o que penso de mim. Não me importam as imagens que os outros criam sobre mim. São imagens às quais digo não serem mais verdadeiras do que a verdadeira imagem. Eu não me interesso por mim, pela minha personagem, digamos. Interesso-me pela forma e pelo modo de contar essa forma. É isso que me apaixona. Dar qualquer coisa às pessoas que me classifique. E assim, classificarem-se também.

Disse uma vez que cada palavra, cada ideia era, em si mesma, um acontecimento. Que quer dizer com isso?

Não digo cada palavra, são precisas muitas palavras para que ganhem um significado. A felicidade da escrita é que, por vezes, se podem escrever coisas que não significam nada. Depois há uma palavra que dá significado a tudo. E então podemos prosseguir. E é aí que começa a escrita. Não há um método que a possa salvar dessa inevitabilidade.

E é assim, nessa permanente descoberta, que se perde o medo das palavras e do seu significado?

Sim, é verdade. Tenho medo. Acho sempre que escrever não é algo normal. Há tantos escritores para quem a escrita não é um problema. A palavra "problema", em grego, significa "promontório", é preciso contornar o obstáculo. Não é normal, é quase um sacrilégio, escrever. Mas quando se escreve "à vista" é como se fosse uma vingança contra a criação que pode, se o que se escreveu for bom, ficar para a vida toda. E essa é a criação definitiva. Mas nunca sabemos o que vai sair.

Nesse sentido como lê, agora, os textos que escreveu quando começou, que muitos deles se posicionaram contra as estéticas na altura dominantes?

Era um gesto, apenas. Tinha 22 anos quando escrevi "Insulto aos Espectadores". Era um jogo irónico...

Que foi recebido como se fosse uma verdade.

Sim, ninguém o podia imaginar. Eu não o imaginava. Contêm coisas seríssimas, sim, sobre o ritual de ir ao teatro, mas era um jogo. Isto não tem nada de contraditório. Nunca foi minha intenção provocar. Mesmo que os actores, no fim, insultem os espectadores, mais não estão a fazer do que a incitar a um jogo, fazendo referência a um modelo social que todos sabemos que existe. Mas nunca insultei os autores. Insurgi-me sim contra os críticos que os tomavam por deuses. Tive sempre imenso respeito pelo trabalho de Peter Weiss ou Gunter Grass. Insurgi-me contra textos críticos que revelavam uma tendência de "bênção papal" que impunha uma falsa autoridade. Opus-me sempre a um realismo que fosse banal, que acreditava que através da reprodução da realidade se chegava a uma verdade. Isso era o absoluto contrario do realismo, que implica uma invenção.

Era uma posição que visava a construção de uma outra identidade nacional, num país a braços com a sua reconstrução social, a partir da literatura?

Nunca tive um programa. Se o tivesse teria sido professor de literatura. Seria tão melhor professor quando fosse convincente a dizer aos alunos para evitarem isto e aquilo. Às vezes é preciso cometer erros quando se escreve e atravessar fronteiras inultrapassáveis de modo a chegar a uma surpresa que produza música no coração.

Escrever não é senão um meio de transporte até ao ponto de chegada?

Sim, absolutamente. É como um barco que navega em terra. Um livro deve ser tão bom quanto a possibilidade de, quando olhamos para o céu, podermos imaginar tudo o que quisermos. Mesmo se o céu está vazio, esse vazio pode mostrar-se de diferentes formas. E esse é, para mim, um sinal de que um livro é bom. E isso praticamente já não existe.

Disse numa entrevista que gostava de se pensar enquanto "escritor-operário". Como equilibrar essa ideia pragmática de trabalhar com a abstracção, a poesia e uma poética que, normalmente, são sugeridas pela leitura de um livro?

Não sei. É preciso sentir antes de avaliar. É preciso ser-se um entusiasta. E acho que, apesar de todas os erros que cometi, nunca deixei de o ser. A escritura é algo de muito são. É muito melhor que o "jogging", o alpinismo ou a ginástica. Há uma resistência que se cria que é muito mais eficaz do que tudo isso. É importante deixarmo-nos ir e não sermos muito conscientes da nossa própria natureza. Não devemos cair no erro de nos interpretarmos.

Assim, e considerando que o modelo que defende para um modo de vida pressupõe a mesma abertura que entende ser necessária para o processo de escrita, o que acha que as pessoas não compreenderam quando vos atacaram da forma como o fizeram a propósito da alegada defesa do regime de Soloban Milosevic na Sérvia e ex-Jugoslávia?

Foi sempre um enigma para mim, eu que sempre acreditei que fazia o bem. Foi o Júlio Cortazar, o escritor argentino, que um dia me disse que eu fazia coisas belas. Guardei essa frase para sempre. E tenho pena que não tenha sido compreendido porque a minha intenção foi sempre praticar o bem e, através da literatura, oferecer às pessoas belas coisas. Um leitor é como um ser que prolonga o mistério que é o ser humano. E que, a cada leitura, inscreve-se na tradição da pesquisa da alma, do entusiasmo, da cólera e da doçura. E acho, sobretudo, que é uma perda para o leitor que vai pensar que este idiota tomou um dos lados. Mas nunca optei por qualquer dos lados. Eu queria apenas reflectir sobre um povo que foi colocado no inferno que é a opinião pública. E queria contar apenas e só o que os outros não tinha contado.

Acha que foi um erro tê-lo feito?

Não, isso não. Adoro os erros mas não acho que isso tenha sido um erro. Erros cometi-os na minha vida privada, onde , por vezes, sou um inútil. Quase que nunca estive tão orgulhoso de algo na minha vida como nessa altura. E sublinho a palavra "quase". Não sou completamente orgulhoso, mas aproximo-me disso.

Às vezes é preciso encontrar-se ovelhas negras. Acha que foi o que aconteceu?

É a época em que vivemos. Sobretudo na Europa Ocidental tornou-se corrente o cinismo. Não tínhamos guerras há muitos anos e entre os seres humanos, e estou também a falar de mim, há muitos desgostos por resolver. Vivemos num ódio profundo uns pelos outros. E os jornalistas são, muitas vezes, administradores desses ódios. Não falo de si, claro, mas é muito frequente ler esses actos de gestão. Eu acho que há muito mais amor num povo que sofre do que de ódio.

É isso que explica que, de certa forma, não sejamos capazes de encontrar uma solução para a Europa?

Sim, provavelmente. Não podemos desejar para a Europa a mesma história dos EUA que, depois da independência dos ingleses, entraram na Guerra da Secessão, mas estamos perto disso. Sou um apaixonado pela Europa, mas não da Europa que hoje temos. E não sei o que podemos fazer. E se queremos viver a nossa vida, o que significa viver a vida dos outros, devemos evitar a palavra "eles" e passar a dizer a palavra "eu". Tornar nosso o problema. Às vezes tenho vontade, para me salvar, de deixar a História, tal é o ódio que tudo isto me provoca. Quero viver, mas como? Não há qualquer hipótese de futuro, de vida, na história que estamos a viver. Todos sabem quem são os bons e os maus, os ditadores e os democratas. Mas depois os democratas dão ordem para matar, precisamente em nome da democracia. E se eu não imaginar que posso sair da História, sinto-me ainda mais perdido e é como se a minha cabeça explodisse.

Esse não saber, esse procurar constante, é o que lhe permite dizer, como disse numa entrevista, não ter ainda a experiência suficiente para atingir um estado de tranquilidade que lhe permita escrever poesia?

Completamente. Nunca escrevi um verdadeiro poema e sempre tive esse desejo. E cada vez mais sinto que a poesia perdeu o seu lugar no mundo. Pelo menos uma poesia como aquela que procuro atingir, e que encontro em poemas de Antonio Granado ou nas canções de Bob Dylan e Leonard Cohen. Isso sim é poesia. E para isso é preciso cantá-los. Talvez um dia o consiga fazer. Já sou suficientemente reconhecido à vida por ter escrito os livros que escrevi. É um pequeno sonho que já foi concretizado. Mas achar que quatro frases escritas por mim podem fazer um poema, é algo que não considero possível. Muitas vezes achei que o tinha conseguido, mas não era senão mais uma ilusão.

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