Sentir o tempo e ver a História nas imagens

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Rui Gaudêncio

Como um posto de captação das forças do passado através da arte e das imagens, Georges Didi-Huberman põe-nos a olhar para a História nas suas sobrevivências, sem nunca deixar de habitar o presente e de tomar posição perante ele

Georges Didi-Huberman é o historiador da arte que, na nossa época, mais contribuiu para pensar a própria disciplina historiográfica, da qual ele é ilustre representante. Quando entramos na sua obra, percebemos que o campo disciplinar se abriu, que a imagem, não apenas a artística, é uma formação trabalhada por tempos diferentes, por anacronismos, e que não é possível compreendê-la se não a considerarmos como manifestação antropológica, fazendo apelo a uma análise que não pode ser apenas estético-formal. As imagens, na sua complexidade e na sua temporalidade (isto é, enquanto algo que se situa no “olho da História”), são o objecto fundamental da vasta obra de Didi-Huberman, que irradiou do domínio estritamente artístico para a literatura, o cinema, a dança, a fotografia, etc. Poderíamos dizer que ele prossegue uma iconologia que tem o alcance de uma ciência da cultura. Esta foi uma das lições que lhe foi transmitida pela obra de Aby Warburg (1866-1929), do qual ele é um grande intérprete. Se há hoje uma “Warburg-Renaissance”, ela deve-se a Georges Didi-Huberman, que foi quem tirou mais consequências do legado dessa grande figura que só recentemente começou a ser resgatada de um silêncio que durou mais de meio século. Não admira, por isso, que nesta entrevista – como acontece nos seus livros – ele evoque constantemente Warburg. É preciso perceber que este grande erudito, que atravessou fronteiras disciplinares e abriu caminhos novos, não forneceu uma teoria nem um método para serem utilizados. Ter tornado a obra de Warburg tão actuante e produtiva, ter-nos mostrado o muito que se pode fazer com ela e o seu alcance e actualidade é mérito de Georges Didi-Huberman que o interpretou como se interpreta a pauta de uma peça musical de Bach (como ele dirá na entrevista) e que, enquanto filósofo, mostra que também é filólogo. Dois dos seus livros estão traduzidos em Portugal, ambos pela Ymago, um projecto editorial de enorme qualidade no campo da História da Arte e da teoria da imagem: Atlas ou a Gaia Ciência Inquieta (2013), e Imagens Apesar de Tudo (2012). Didi-Huberman esteve em Lisboa durante duas semanas, tendo dirigido um seminário na FCSH da Universidade Nova de Lisboa, no curso de doutoramento dirigido por João Mário Grilo, sobre Pasolini e Godard.



É geralmente apresentado como um historiador da arte, mas de certo modo “traiu” a disciplina ou, pelo menos, deslocou-a, não só porque os modelos de temporalidade com que trabalha não são os da historiografia convencional, mas também porque abriu a arte e o estudo das imagens artísticas a dimensões que não são artísticas. Será que, à imagem de uma figura ilustre que lhe é muito querida e familiar, também pratica uma “ciência sem nome”?

Percebo o que quer dizer com essa expressão com que Robert Klein, um historiador de arte nascido na Roménia, se referiu à disciplina que Aby Warburg teria fundado. Eu trairia a disciplina da história da arte se ela fosse constituída por uma só parte. Mas ela, como todas as disciplinas, é um campo de batalha. Não traí nada nem ninguém, faço parte de um certo movimento que combate outro, e é em termos de conflito que temos de ver as coisas. Critiquei uma história da arte que vi praticada em França, na época em que me formei. Se tivesse que falar dos meus modelos, nomearia, por exemplo, Foucault, que regressou a Binswanger e o traduziu; Lacan, que impôs o regresso a Freud; Derrida, que regressa a Husserl e Heidegger; Deleuze, que relê Espinosa. Eu também entendi que devia reler o que me parecia fundador da história da arte e regressei ao que foi escrito, na Alemanha e na Áustria, entre o final do século XIX e 1933, isto é, Aloïs Riegl, Schlosser, Wölfflin e, evidentemente, Aby Warburg. Eu não traí, mas fui reler o que, isso sim, tinha sido traído. Quando Panofsky foi para os EUA, fugindo ao nazismo, também se distanciou de alguns conceitos filosóficos de língua alemã. Distanciando-se de todo este pensamento, a história da arte julgava tornar-se uma disciplina autónoma, mas aquilo em que se tornou foi numa disciplina positivista que esquecia os seus posicionamentos filosóficos. Eu regressei então a certos questionamentos filosóficos da história da arte, que é, evidentemente, uma disciplina filológica, mas também filosófica.

Tanto quanto essa dimensão filosófica, a história da arte, tal como você a pratica, orienta-se no sentido de uma Kulturwissenschaft, uma disciplina muito alemã e que só impropriamente podemos traduzir por “ciência da cultura”.

Exactamente. Abrindo a história de arte a outras disciplinas e alargando-a a objectos, imagens e documentos que não são artísticos tende-se para uma Kulturwissenschaft (e lembremos que a biblioteca fundada por Warburg se chamava Kulturwissenschaftliche Bibliothek Warburg). Mas toda a produção de discurso, toda a disciplina, é um domínio de conflito: temos, por um lado, a Kulturwissenschaft continental e, do outro, os cultural studies americanos. E é preciso ver que correspondências e incompatibilidades existem entre ambos.

No seu caso, a distância em relação aos cultural studies parece-me grande.

Há gente formidável do lados dos cultural studies. Mas há, de facto, um gap entre o pensamento continental e o pensamento anglo-saxónico e isso traduz-se também por práticas académicas diferentes. Há qualquer coisa neste campo que não funciona, não passa, nas trocas discursivas entre os Estados Unidos e a Europa continental. Já tive fortes polémicas com críticos e historiadores da americanos, tais como como Rosalind Krauss e Michael Fried, talvez isso determine a minha percepção.

Esse gap, que torna difícil o diálogo, está bem patente na recepção de Warburg. Muito embora a sua biblioteca e todo o seu espólio tivessem sido transferidos para Londres, o Warburg Institute nunca foi um centro de irradiação do trabalho e das lições de Warburg...

É verdade. O Warburg Institute nunca teve muitos warburguianos. E Gombrich, que foi o seu director de 1959 a 1974, é um bom sintoma daquilo em que se tornou a história da arte de língua alemã, muito filosófica, quando ele teve de se expatriar, de Viena para Londres, e mudar de língua, de vocabulário e de contexto social. O Instituto Warburg instalou-se em Londres, mas até ao ano 2000 não houve nenhuma tradução, em inglês, dos textos de Warburg, editados em 1932 por Gertrud Bing. Agora, pelo contrário, Warburg está muito na moda nos EUA, vamos ver como é que ele aí é lido. Tive um debate com Benjamin Buchloh porque a partir do momento em que adoptamos certas hipóteses fundamentais de Warburg, nomeadamente a famosa Nachleben, a sobrevivência das imagens (à qual concedo um lugar central no meu livro sobre Warburg [L’image survivante, Paris, Minuit, 2002], não podemos aceitar a sucessão: moderno, anti-moderno, pós-moderno. Ora, essa é a via preferida dos americanos.

A distância ou até a oposição entre Warburg e Panofsky (que surgiu ligado ao círculo de Warburg, mas depois não prolongou a iconologia warburguiana) dever-se-ão ao facto de Panofsky se ter exilado nos Estados Unidos?

Panofsky é um pensador suficientemente grande para que não tentemos explicá-lo por razões conjunturais. Há outras razões fundamentais: antes de mais, penso que Panofsky tinha medo do lado patológico de Warburg [Warburg esteve durante mais de cinco anos internado, entre 1918 e 1923, e foi tratado, entre outros, por Ludwig Binswanger de uma profunda esquizofrenia]. Era um neo-kantiano e não gostava do lado nietzschiano de Warburg.

A lição fundamental de Warburg, aquela que você tem levado muito longe e de maneira muito produtiva, é uma história de arte em que o passado anacrónico está constantemente a ressurgir por força de uma memória socialmente impressa...

Warburg é um autor muito difícil, muito erudito e não se consegue ver a teoria que está por trás dos seus textos. Os manuscritos são delirantes. Por exemplo, há um manuscrito de mais de cem páginas, com um título fascinante, Grundbegriffe, conceitos fundamentais, que é quase todo dedicado à procura de um subtítulo para o seu atlas Mnemosyne. Ele tinha uma boa dose de loucura. E é para ser interpretado como se interpreta uma partitura de Bach. Resumindo, para além do facto de ter alargado o domínio da história da arte às imagens em geral, não artísticas, há três grandes lições de Warburg: em primeiro lugar, ele mudou o modelo de espaço da história da arte. Ele mostra, por exemplo, que para compreender o Renascimento florentino é preciso fazer apelo a fontes que vão muito longe no espaço, nomeadamente a astrologia árabe. Sem os árabes, não se compreende o Renascimento. Este modelo diz-nos, portanto, que as imagens são operadores de migração, Wanderung. Hoje é muito importante fazer o elogio da migração, saber que as imagens são feitas para atravessar fronteiras. Em segundo lugar, ele forneceu um novo modelo temporal a partir da Nachleben, da sobrevivência, que faz com que aquilo que julgávamos que era de uma determinada época e tinha desaparecido reapareça seleccionado e reactivado por outra época. Nada é obsoleto e o esquema habitual da história da arte, de um conformismo total (veja-se a sua última versão: modernismo, anti-modernismo, pós-modernismo), não funciona, como mostra Warburg. É como se disséssemos: “A minha infância acabou, chegou ao fim e por isso não vamos mais falar nela”. Ora, durante toda a nossa vida, as coisas da nossa infância vão reaparecer e somos crianças até ao fim da nossa visa. É o que se passa na cultura, na história das imagens, segundo Warburg. O seu terceiro conceito fundamental é o de pathoformel, fórmula de pathos, que Warburg mostra, de uma maneira extraordinária, que opera com uma enorme força nas imagens.

Uma força que é como uma inscrição traumática, à imagem das formações do Inconsciente. É por isso que a análise das imagens exige aquilo a que você chama uma “critique symptomale”, uma crítica orientada para os sintomas?

Abolutamente. Mas a psicanálise remete aqui para uma arqueologia, tanto num sentido apontado por Walter Benjamin, como no sentido de Michel Foucault: uma análise que não se contenta apenas em decifrar os signos, não se satisfaz com uma prática de historiador de arte à Sherlock Holmes, que consiste em procurar elementos que fornecem a chave para uma decifração do sentido. Para Freud, o sintoma é um acontecimento que surge de uma sedimentação inconsciente e que é preciso analisar como faz um arqueólogo. Um sintoma não se reduz à chave de um enigma.

Assim entendida, enquanto sintoma, uma imagem é uma coisa muito mais complicada do que se pensa habitualmente...

Sem dúvida. Há uma tradição filosófica que vem de Platão que nos diz que a imagem é uma ilusão, um simulacro, é portanto um erro e a ausência de conhecimento. Isso tem a sua parte de verdade: pensemos no efeito que sofremos se passarmos os dias inteiros diante da televisão. Mas as imagens de um Leonardo da Vinci, de um Eisenstein ou de um Gerhard Richter são outra coisa e já não podemos dizer que a imagem é uma realidade menor. A tradição platónica existe ainda de maneira muito viva, hoje. Em França, temos um grande filósofo platónico, que é Alain Badiou. Para os platónicos, a ideia de cadeira é o verdadeiro, a cadeira real é já menos verdadeira e a imagem da cadeira, essa, é completamente falsa. Eu penso de maneira diferente: a imagem não é um ideia ou um conceito enfraquecidos, é uma ideia complexificada, é um desenvolvimento do conceito e não um enfraquecimento do conceito.

Há um conhecimento pela imagem que nós identificamos, no entanto, com a ideia de leitura, com o modelo de sentido da palavra. Falamos, por isso, da legibilidade do mundo, mas não da imaginabilidade do mundo.

Eu falo de legibilidade, no sentido em que Benjamin fala da legibilidade, Lesbarkeit, das imagens, e não no sentido de decifração de enigmas. Na concepção de Benjamin, as imagens são um medium para a visibilidade do tempo, na mediadas em que elas trazem consigo uma marca histórica.

Nesse sentido, anula-se de certo modo a oposição entre palavra e imagem, entre legibilidade e visibilidade...

Quando era jovem, critiquei a noção de legibilidade que supunha um privilégio do linguístico em detrimento da imagem. Se reduzo uma obra-prima como a Gioconda a algumas frases que pretensamente a decifram, entro numa legibilidade que não me interessa. Mas mais tarde descobri a noção benjaminiana de legibilidade e o que é, para ele, “ler o que nunca foi escrito”. Para Benjamin, são as imagens dialécticas, como ele lhes chama, que fazem com que o tempo da história se torne legível. E a sua noção de imagem dialéctica está tanto do lado do que é para ser visto como do que é para ser lido. E Warburg, criador da iconologia (um termo composto por ikonos + logos, ou seja, imagem + palavra) dizia que entre a palavra e a imagem há uma co-naturalidade. Chama-se a isso figurabilidade, como acontece no trabalho do sonho.

A iconologia poderia fornecer um bom instrumento de análise política. No entanto, este é um domínio em que continua a haver um privilégio quase exclusivo da palavra.

Quando Warburg morreu, em 1929, estava a trabalhar no atlas Mnemosyme e grande parte do seu trabalho (por exemplo, sobre Lutero) era já uma iconologia política. Ele coleccionou, aliás, cerca de trinta mil imagens da Primeira Guerra Mundial, da qual ele desejava fazer uma iconologia política. O último painel do seu atlas é consagrado às relações entre a ditadura laica de Mussolini e o Papa Pio XI.

Mas aí, perante essas imagens, ele parece também preocupado com o fenómeno moderno da proliferação e da “salada de imagens”, como ele lhe chamava, e que receava que fossem um factor de esterilização da cultura.

Sim. Mas atentemos nisto: não há uma ontologia da imagem, não podemos dizer o que é uma imagem. E quanto às palavras? Por exemplo, a palavra alemã Kultur, pronunciada num discurso de Goebbels não é a mesma que é dita por Benjamin ou por Victor Klemperer, que escreveu sobre a língua do Terceiro Reich. E as imagens são exactamente como as palavras. Nesse painel do Atlas de que falei, o que surge como preocupação principal – o que é extraordinário, em 1929 – é o triunfo das ditaduras na Europa e o anti-semitismo. É claro que a iconologia política é uma questão crucial e foi nessa direcção que fui orientando o meu trabalho, nomeadamente no meu livro sobre as imagens de Auschwitz (Imagens, Apesar de Tudo).

Nesse livro, analisa as quatro imagens que nos chegaram do interior de Auschwitz, da autoria de elementos dos Sonderkommando. Essas imagens são malgré tout, apesar de tudo, apesar da suposta ausência de imagens do Holocausto.

Regressamos ao problema de que falei há pouco, os platónicos que acham que as imagens são uma mentira. Há um discurso sobre a “infigurabilidade”, a “irrepresentabilidade”, a “inimaginabilidade” do Holocausto. Essas quatro imagens que analisei, não fui eu que as inventei, elas já existiam. É um sintoma muito eloquente que essa imagens, tão importantes, não tenham sido olhadas como exigiam e se tenha mesmo feito como se elas não existissem. Eu prestei-lhes a devida atenção, o que deu origem a uma violenta polémica [com Gérarad Wajcman e Elisabeth Pagnoux, na revista Temps Modernes, dirigida por Claude Lanzmann, o autor de Shoah] onde se manifestou, mais uma vez, a primazia da linguagem sobre a imagem, a ideia de que a imagem mente e a linguagem diz a verdade. É preciso criticar esta ideia: as imagens também podem prestar testemunho, como no caso destas quatro imagens.

As imagens vieram perturbar a ideia quase mística de um “inimaginável” do Holocausto, de um acontecimento sem imagens. E um célebre dito de Adorno tinha inaugurado a ideia de um inefável...

As duas coisas, o inefável e o inimaginável, coincidiam, iam a par. A ideia crucial desse meu livro é o “apesar de tudo”. Essas imagens fotográficas são arrancadas ao silêncio, para serem feitas foi necessário haver uma organização colectiva de algumas pessoas que correram o risco de as fazer. Foi um acto de resistência, são imagens, “apesar de tudo”. A grandeza de um poeta como Paul Celan foi a de ter tornado o Holocausto “escrevível”, apesar de tudo.

Um dos conceitos fundamentais que tem utilizado é o de montagem (para o qual a forma atlas fornece o melhor exemplo). É um conceito que conhecemos sobretudo da linguagem cinematográfica, mas que você estende a muitos campos...

O meu interesse pela montagem vem de muito longe, desde o meu primeiro trabalho, sobre a histeria. Depois, trabalhei sobre a revista Documents, de Georges Bataille, onde havia montagens de tipo surrealista. Eisenstein veio a Paris em 1929, para apresentar os seus filmes A Linha Geral e O Velho e o Novo. O prefeito de Paris proibiu a projeccção e ele deu uma conferência sublime, improvisada, em francês, na Sorbonne, para uma enorme audiência que o tinha ido ouvir. Mas o que escapou a toda a gente foi que para a revista Documents ele fez uma montagem de fotogramas do filme que não tinha podido mostrar, sem qualquer texto.

Era uma obra de arte, a montagem era um processo artístico típico das vanguardas do século XX...

Mas era também uma tomada de posição. Como quem diz: eu insisto em mostrar o meu filme. No meu livro sobre Bataille, estabeleci a relação entre Bataille, Eisenstein e Warburg. A problemática da montagem é central nos três. Foi por isso que comissariei uma grande exposição, em 2010, no Museu Reina Sofía sobre o Atlas: para mostrar que é um problema geral que ultrapassa o cinema.

Tem três livros dedicados parcial ou totalmente a Pasolini. O seu interesse por Pasolini é maior pelo cineasta, pelo poeta e escritor ou pelo ensaísta?

Já respondi a essa questão quando disse que não havia um privilégio das imagens sobre a linguagem. Essa distinção não deve nem pode ser feita. Por exemplo, La rabbia começou por ser um poema e depois foi um filme. Pasolini é tudo ao mesmo tempo. E é isso que faz dele uma figura tão grande. O mesmo podemos dizer de Eisenstein: a sua obra teórica é tão importante como os seus filmes e é inseparável deles.

O “apocalipse cultural” que Pasolini diagnosticou naquele célebre texto sobre o desaparecimento dos pirilampos, que analisa no seu livro Survivance des Lucioles, mantém-se actual?

É de uma actualidade total. E ele foi um dos artistas que melhor representou o que encontramos em Warburg. Ele fez todas as migrações possíveis no espaço. Veja-se por exemplo como ele pode começar um plano em Capadócia e acabar em Pisa como se fosse o mesmo espaço. Em segundo lugar, ninguém compreendeu melhor do que ele a questão das sobrevivências. Para ele, Ninetto, o seu actor, é Dionísio, um deus antigo, e a língua do proletariado napolitano é o que há de mais antigo. E há ainda a sua relação genial com o pathos. Não se trata de sentimentalismos, mas do patético próprio da tragédia grega.

A atitude revolucionária de Pasolini baseava-se numa força vinda do passado, “Io sono una forza del Passato” é o primeiro verso de um dos seus poemas.

Essa questão, desenvolvo-a no meu livro Les peuples exposés. Há uma política revolucionaria das Nachleben, das sobrevivências. Não se faz a revolução sem sobrevivências. Não haveria a Revolução Francesa sem o modelo da república romana. Quando Pasolini diz “Io sono una forza del Passato” dá a ver-nos que na nossa relação com o passado é catastrófico reduzi-lo a um conformismo. Donatello, ao olhar para arte grega e ao voltar a ela, tornou-a revolucionária. Pasolini encarna de maneira exemplar o facto de que há numa certa relação não conformista com o passado, com a memória, uma força revolucionária.

E Godard?

Godard é um pouco o contrário, tem uma relação com o passado e com a linguagem muito diferente. O meu trabalho sobre ele é muito crítico no modo como ele vê a História e o passado. Godard pensa que o passado é mau e o presente e o futuro são bons, enquanto Pasolini vê no passado uma força para o futuro. 

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