Espreitando Chico

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Wagner Homem, o curador do "site" oficial de Chico Buarque, lançou o livro "Histórias de Canções" onde reúne curiosidades e pequenas histórias dos momentos de criação do compositor. Já está nos tops brasileiros

Se pensavam que Chico Buarque compôs "Olhos nos Olhos" (1976) a pensar numa mulher, desenganem-se. Aqueles versos, "Olhos nos olhos, quero ver o que você faz/Ao sentir que sem você eu passo bem demais", foram escritos numa noite depois de o compositor ter passado a tarde a conversar com Paulo Pontes, o amigo com quem escreveu a peça "Gota D'Água", que estava doente e o deixou preocupado.

Talvez não saibam que quando a canção "Tanto mar" (1975), dedicada à Revolução dos Cravos ("Sei que estás em festa, pá/Fico contente"), foi enviada para ser aprovada pela censura brasileira, apanhou o censor Augusto da Costa, que tinha sido defesa da selecção de futebol brasileira, em 1950, no jogo do Campeonato do Mundo em que o Brasil perdeu com o Uruguai. Da canção só passou na censura o título e Buarque reagiu: "Porra, Augusto, você perde a copa e ainda vem me aporrinhar".

Estas e outras histórias por trás das canções que Chico compôs entre 1964 e 2008 estão reunidas em "Histórias de Canções - Chico Buarque", de Wagner Homem, que acaba de ser publicado pelo grupo editorial português Leya no Brasil. É um livro que, como escreve Toquinho no prefácio, conta "histórias verdadeiras, de músicas verdadeiras, de um compositor verdadeiro". Tem o mérito de reunir pequenas histórias que estavam espalhadas por biografias (por exemplo, em "Chico Buarque: Tantas Palavras", de Humberto Werneck), entrevistas, documentários (a série de doze DVD realizada por Roberto de Oliveira ou "Descontrução" de Bruno Natal) e até no "site" do cantor que foi criado, em 1998, por Wagner Homem que até hoje é o seu curador. Chico Buarque num "e-mail" que escreveu a Wagner Homem (a quem trata por "cachorrão") explicava que enquanto lia o livro ia pensando que tinha uma história boa para lhe contar, mas à medida que avançava, todas as histórias, afinal, apareciam. "Vou pensar mais um pouco, procurar alguma anedota inédita, mas acho que você as conhece todas, melhor que eu", dizia-lhe. A ideia de fazer o livro surgiu a Wagner (que também trabalha como revisor, "ghost-writer" e mantém o "site" de Maria Bethânia e de Mario Prata) devido às inúmeras solicitações que ao longo destes onze anos tem recebido na sua caixa de correio. Quis fazer um livro que não fosse nem analítico nem académico. Essa fórmula parece ter resultado pois já entrou nos três primeiros lugares das principais listas de livros mais vendidos no Brasil (www.historiasdecancoes.com.br) e será editado em Portugal pela Dom Quixote em 2010.

Poeta, deixa ficar

Em "Histórias de Canções" o leitor avança cronologicamente e no início de cada capítulo, Wagner Homem faz uma introdução à época em que as canções foram criadas, interligando a vida do compositor com a história do país. Por lá passam também as composições que Chico escreveu nos anos 70 sob o pseudónimo Julinho da Adelaide e Leonel Paiva para escapar à censura. E há revelações de Edu Lobo, de Toquinho, de Caetano.

Está reproduzida uma carta que Tom Jobim enviou a Buarque depois de ter ouvido a canção "Paratodos" (1993) que Chico fez em sua homenagem. "Chico, my love, a tua homenagem me deixou estarrecido. Estou desvanecido, deliquescente, maravilhado, sobretudo porque é Para Todos, para mim, para você! (...) Beijo, beijo, beijo, beijo. Tom Jobim".

A ideia de que a musa para a canção "Morena dos Olhos d'Água" teria sido a "socialite" Eleonora Mendes Caldeira também fica agora tremida. Chico nunca confirmou nem nunca desmentiu mas as suas irmãs, Ana e Maria do Carmo, garantem que quando ele terminou esta canção ligou para mais de uma mulher dizendo que cada uma delas era a sua musa.

Mas o mais surpreendente é o desvendar do processo de trabalho e criação entre Chico e Vinicius de Moraes através do envio de cartas e de cassetes áudio. Apesar de estarem em países diferentes - Chico no Brasil, Vinicius na Argentina - trabalhavam em parceria, trocando ideias por escrito. Em 1971, a propósito de uma canção que tinham feito, Vinicius escreve a Chico uma carta deliciosa: "Chiquérrimo: Dei uma apertada linda na sua letra, depois que v. partiu, porque achei que valia a pena trabalhar mais um pouquinho sobre ela (...) Claro que a letra é sua, eu nada mais fiz que dar uma aparafusada geral".

A letra de que aqui se fala é a da canção "Valsinha" (1970), aquela que conta "um dia ele chegou tão diferente do seu jeito de sempre chegar/ Olhou-a dum jeito muito mais quente do que sempre costumava olhar/ E não maldisse a vida tanto quanto era seu jeito de sempre falar".

Nessa carta Vinicius alterava para: "Um dia ele chegou tão diferente do seu jeito de sempre chegar/Olhou-a de um modo mais quente do que comumente costumava olhar/E não falou mal da poesia como era mania sua de falar". 

Chico respondeu então ao "Poeta" que ficara "meio embananado" com a carta porque já estava a cantar aquela letra nos concertos e o público recebia a valsinha com "o maior entusiasmo, pedindo bis e tudo." Ponto por ponto, Chico foi "puxando a sardinha" para o lado da sua letra e explicando a Vinicius porque é que não aceitava algumas das propostas. "(...) Eu prefiro que o nosso personagem xingue ou, mais delicado, maldiga a vida, em vez de falar mal da poesia. A solução é mais bonita e completa, mas eu acho que ela diminui o efeito do que segue. Esse homem da primeira estrofe é o anti-hippie. Acho mesmo que ele nunca soube o que é poesia. É bancário e está com o saco cheio e está sempre mandando sua mulher à merda. Quer dizer, neste dia ele chegou diferente, não maldisse (ou xingou mesmo) a vida tanto e convidou-a pra rodar. Convidou-a para rodar eu gosto muito, poeta, deixa ficar." Ficou.

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