Dominique Lapierre e o círculo de energias positivas

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Escreve best-sellers e ajuda crianças com lepra e tuberculose na Índia. O que procura é a grandeza humana e os heróis que fazem a História. Esteve em Lisboa a lançar "Um Arco-Íris na Noite", livro sobre a África do Sul, e conversámos com ele sobre o seu círculo do Bem

Um dia alguém propôs a Dominique: "Queres conhecer uma Madre Teresa da África do Sul?" Ele não podia resistir. A grandeza humana é o seu tema. Vai atrás dela onde quer que se encontre. "O que procuro são os heróis. Aquelas pessoas que estão acima de todas as tragédias. Quando encontramos uma personagem dessas, temos uma história", disse ao Ípsilon Dominique Lapierre, que a editora Planeta trouxe a Lisboa para lançar "Um Arco-Íris na Noite".

É assim desde que, no início dos anos 60, começou a trabalhar na "Paris Match". O primeiro herói que encontrou foi um português, Henrique Galvão. Dominique estava em Nova Iorque e recebeu um telefonema. Um português tinha desviado um navio de cruzeiros com 630 passageiros e 390 tripulantes a bordo, para chamar a atenção mundial para a ditadura de Salazar. A revista queria nada menos que a entrevista exclusiva.

Dominique partiu para o Recife, onde o paquete Santa Maria estava ancorado, mas já lá estavam mais de 500 jornalistas, à procura do mesmo. Após várias tentativas falhadas, fardou-se de bombeiro e entrou no navio. Encontrou Galvão e conseguiu fugir com ele para a cidade. No pequeno quarto do seu Hotel Boa Viagem, fez-lhe uma entrevista que durou a noite inteira.

"Foi uma das noites mais fantásticas da minha vida. Por baixo da porta, podia ver uns sapatos pretos de homem andando de um lado para o outro no corredor. Salazar tinha mandado cinco agentes da PIDE para assassinar Galvão. Disse-lhe: ‘De um momento para o outro eles vão abrir a porta e disparar. E de certeza que não vão querer deixar uma testemunha'. Às cinco da manhã, saímos para um barzinho na marginal, sentámo-nos na mesa de uma prostituta. Um carro de faróis apagados circulava lentamente pela avenida, e eu só imaginava as metralhadoras a saírem pela janela".

A entrevista foi de facto um exclusivo mundial. Henrique Galvão contou-lhe tudo, desde uma certa manhã, em que se sentia "particularmente deprimido" e leu, no "Diário de Caracas", a notícia de que o paquete português "Santa Maria" chegaria ao porto venezuelano de La Guaira. "Isto inflamou-me a imaginação", disse Galvão a Dominique. "Se conseguíssemos apoderar-nos do navio e levá-lo para África, a fim de formarmos um exército de libertação, poderíamos destituir Salazar e Franco".

Henrique Galvão era "uma figura extraordinária". E Dominique nunca mais se interessou por personagens menores. Procurou, pelo mundo, e encontrou Madre Teresa. "Quando a vi andar pelas ruas dos bairros de lata de Calcutá, e essa onda de amor que chegava das pessoas, que vinham ter com ela, que a queriam tocar, pensei: ‘ela tem realmente qualquer coisa'". E Dominique imergiu na vida da freira albanesa. Escreveu um livro sobre a independência da Índia ("Esta Noite a Liberdade") e outro sobre um bairro de lata de Calcutá.

"Encontrei ali os verdadeiros heróis da Humanidade. Pensei: ‘Tenho de ser a voz deles'. Fui a uma papelaria, comprei 15 canetas e 5 cadernos, fiquei lá a viver dois anos".

"A Cidade da Alegria", que contava a história dos pobres desse bairro, foi traduzido em muitas línguas e vendeu 9 milhões de exemplares. "Tornou-se um livro de culto porque eu não prego. Não digo: ‘Vejam, nós aqui em Portugal comemos três vezes por dia, e aquelas pessoas só comem de três em três dias'. Odeio esses pregadores. Apenas conto uma história". Mas funcionou. "Recebi 300 mil cartas, de todo o mundo. Houve pessoas que me disseram: ‘Eu tinha decidido cometer suicídio, mas li o seu livro e reencontrei o amor pela vida'. O livro mudou a vida de muitas pessoas".

Mas isso já foi depois de Dominique ter conhecido Madre Teresa e ela lhe ter dito: "Tu podes fazer o mesmo que eu". Ele tinha 50 anos. "Esta Noite a Liberdade" estava a vender bem. Os primeiros "royalties" ascendiam a 50 mil dólares. Dominique pegou nesse dinheiro e dirigiu-se a Calcutá. Encontrou Madre Teresa na missa da manhã. "Madre, sabe de alguma instituição a trabalhar com crianças leprosas que precise de dinheiro?", perguntou.

"Ela olhou para mim e disse, com o seu sotaque albanês: ‘Siz iz God who senz you!' E apresentou-me a um inglês chamado James Stevens que era negociante de camisas e gravatas em Londres e andava de Jaguar, mas um dia decidiu ir para Calcutá, com todo o seu dinheiro, para ajudar as crianças leprosas. Abriu um lar chamado Ressurreição e em 15 anos salvou 10 mil crianças. Mas agora o dinheiro acabara e preparava-se para fechar a instituição. Eu dei-lhe os 50 mil dólares e prometi-lhe que nunca o deixaria fechar a Ressurreição".

Foi Stuart que levou mais tarde Dominique ao bairro de lata chamado Cidade da Alegria. E, em consequência, a montar a sua própria instituição humanitária, depois do êxito do livro. "Comprei um velho ferry boat em Calcutá, reabilitei-o, instalei máquinas a bordo, um pequeno laboratório, uma sala de operações, contratei dois médicos e cinco enfermeiros e começámos a navegar o delta do Ganges".

Mas o hospital flutuante só dava assistência a sete das 54 ilhas, e por isso Dominique comprou mais três barcos. Metade de todos os royalties dos livros, que escreveu e viria a escrever, e todas as doações dos leitores destinam-se a financiar a Fundação Cidade da Alegria. "Em 28 anos, curámos um milhão de doentes de tuberculose. Abrimos dez escolas, concedemos microcréditos".

A África do Sul através dos seus heróis

Uma Madre Teresa em África? Dominique não podia resistir. "Onde está ela?, perguntou. Estava na cidade do Cabo. "Provinha de uma família rica, era casada com um famoso advogado. Pertencia à elite privilegiada do regime do ‘apartheid', no qual vivera toda a vida sem se aperceber da sua verdadeira natureza. Até que um dia, no hospital onde trabalhava, como terapeuta da fala, se deparou com o caso de um miúdo negro, de seis meses, que fora operado, na zona negra do hospital, e desapareceu. Que lhe teria acontecido? Estava morto? Foi levado para casa? Ninguém quis saber, mas ela decidiu agir. A partir daí, dedicou a sua vida a salvar crianças negras, arriscando a sua própria vida".

Foi para contar a história de Helen Lieberman que Dominique Lapierre partiu, há três anos, para a África do Sul. "Era um formidável desafio. Fiquei impressionado, mal a vi. Tão modesta, e com uma vida realmente épica. Num certo sentido, ela redimia a consciência da África do Sul, dos anos do ‘apartheid'".

Iniciou uma série de entrevistas com Helen, que um dia o levou num passeio pela Cidade do Cabo, contando histórias do país. "Mostrou-me a estátua enorme de um holandês, que tinha chegado ali no dia 7 de Abril de 1652, não para conquistar a África do Sul, mas para semear alfaces, que dariam vitaminas aos marinheiros da Companhia das Índias do Oriente, que morriam de escorbuto. Depois descobri que aqueles cultivadores de alfaces eram calvinistas, que professavam pertencer a um povo eleito por Deus para fazer reviver os valores cristãos..."

Dominique tinha encontrado outro herói. Decidiu então que o seu livro seria a história da África do Sul, através dos seus heróis.

"Eu e a minha mulher comprámos um ‘kart' e fomos para a floresta, para tentar sentir na carne o que sentiram aqueles primeiros colonos, quando chegaram". Foi esse o método, para cada uma das personagens. "Estive na minúscula cela 466/64, onde Nelson Mandela esteve preso. Deitei-me no chão de cimento, olhei para o tecto e disse para mim próprio: ‘Durante 10 mil noites, aquele homem olhou para este tecto, sem outra esperança a não ser a de morrer nesta jaula'. Mas ele acreditava. Pensava constantemente no dia em que a África do Sul seria livre. É incrível esse poder".

Outras personagens povoam "Um Arco-Íris na Noite", como se fossem elas, com os seus gestos heróicos e invulgares, a conduzir a história do país. Uma delas é Christiaan Barnard, o cirurgião dos primeiros transplantes cardíacos. "Ele fez algo incrível, na época do apartheid: ousou transplantar um coração negro num peito branco. Isto numa altura em que as garrafas de sangue para transfusão tinham um rótulo que dizia: ‘Atenção! Sangue negro. Qualquer pessoa tem o direito de recusar uma transfusão com este sangue'. Que equivale a dizer: ‘Qualquer pessoa tem o direito de morrer para não sofrer uma transfusão de sangue negro'".

Mas outra personagem é Wouter Basson, o cardiologista que inventou formas subtis e sórdidas de eliminar a raça negra. "Substâncias tóxicas que colocavam em cigarros, guarda-chuvas, chocolate, cervejas ou até em cuecas. No entanto, Basson está vivo, habita um condomínio guardado por seguranças em Pretória. O tribunal não condenou os seus crimes".

A Comissão de Verdade e Reconciliação é outro dos sinais de grandeza na história da África do Sul. "Como foi possível que os carrascos fossem entrevistados pelas famílias das suas vítimas, e pedissem desculpa! Como foi possível que Mandela tivesse ido falar com os brancos mais poderosos para lhes dizer: ‘Fiquem. Precisamos que vocês tomem conta da nossa economia!' Foi por estas pessoas existirem que passei três anos da minha vida na África do Sul. É por causa destas pessoas que podemos ter orgulho em sermos humanos".

É uma espécie de círculo de energias positivas. Dominique Lapierre vasculha a realidade até achar pepitas de grandeza humana, a mesma que sem dúvida tem em si. Por isso os seus livros vendem milhões, que chegam para ele ser rico e curar multidões de crianças na Índia. "Com a venda de um único exemplar desta obra", diz, segurando o livro sobre o país onde decorrerá no próximo ano o Campeonato do Mundo de Futebol, "eu alimento dez crianças leprosas durante uma semana".

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