Cabrera Infante, o nosso agente do havano

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Uma "ode" ao prazer de fumar, uma história do tabaco, curiosidades avulsas sobre charutos cubanos (e não só), uma antologia do tabaco na literatura, e a crónica de uma relação amorosa com o cinema. "Fumo Sagrado" é para fumadores e abstémios.

Actores como John Wayne, Gary Cooper, Randolph Scott, James Stewart e o mais perene dos "cowboys" justiceiros, Clint Eastwood, todos eles foram capazes de acender um fósforo à primeira tentativa, com modos bastante insolentes e o mínimo de esforço, raspando-o em qualquer coisa: na barba de três dias, na careca dum vilão bêbado, no traseiro bamboleante duma corista, nas botas que não lhes saíam dos pés nem para dormir, ou nos jeans mal protegidos pelos safões de couro. John Wayne acendeu assim um charutito sob o sol abrasador do meio-dia em "Rio Bravo", e os outros fizeram-no em muitos outros lugares. Mas há uma falha (obviamente que sem importância) em todas estas histórias de insolência e maus modos de macho: é que este tipo de fósforo só foi inventado em 1890, muito depois de o Oeste ter sido conquistado, e ainda demorou uns quantos anos a tornar-se popular.

Quem faz este reparo é o escritor cubano Guillermo Cabrera Infante (1929-2005) em "Fumo Sagrado", livro recentemente por cá publicado, e que o autor escreveu directamente em inglês ("Holy Smoke") em 1985, quase vinte anos passados desde que partira de Cuba para o exílio em Londres. Cabrera Infante foi crítico de cinema durante vários anos na revista cubana "Carteles" e escreveu também guiões. Para além de outras coisas, "Fumo Sagrado" pode ser lido como um relato erudito da relação do fumo (sobretudo dos charutos) com o cinema. Mesmo quando aborda aspectos mais práticos do tabaco, ou quando conta uma história, há quase sempre referências cinematográficas. Como, por exemplo, quando quis falar sobre a duração do acto de fumar um charuto. Conta ele que um dia teve que visitar com Fidel Castro uma herdade onde se criava gado algures em Cuba, e que à noite se pôs a ver um "western" na televisão. Castro entrou na sala, ficou a assistir ao filme, mas logo perguntou quem é que tinha charutos. Cabrera Infante tinha quatro havanos a assomarem-lhe no bolso da camisa, teve que dizer que tinha e deu-lhe um. À medida que se ia entusiasmando com aquele desfilar de "cowboys" cantores e de diligências, Fidel pediu mais um e logo depois outro. Diz Cabrera Infante: "Felizmente, eu sabia que ‘A Caravana Perdida' (Wagon Master, 1950) era o ‘western' mais curto de John Ford, quase não durava noventa minutos." Mas a história continua: o filme terminou e Castro levantou-se, de uniforme e pistola, e comentou: "Demasiadas canções e poucos índios." Todos concordaram em coro, pois o primeiro-ministro era também "o nosso primeiro crítico de cinema". Mas antes de sair, Castro ainda disse apontando-lhe para o bolso: "Estou a ver que ainda sobrou um índio." E Cabrera Infante entregou-lhe o seu último charuto. Tempo depois viu no chão os restos dos três charutos "que quase não tinham sido consumidos".

Hollywood e ódios de estimação

Faz quase parte do senso comum saber que Humphrey Bogart foi o maior fumador da história do cinema, pelo menos na tela. Depois de fumar em "Relíquia Macabra" (The Maltese Falcon, 1941), onde a personagem, o detective Sam Spade, o obrigava a enrolar os seus próprios cigarros - e a falta de destreza o obrigava a prolongar esperas e a repetir frases, como quando a secretária lhe anuncia uma visita e Spade diz, "Manda-a entrar, querida", e depois, ainda ocupado com a difícil arte do enrolamento, "Manda-a lá entrar" - Bogart torna-se num "fumador pensativo" em "Casablanca" (1943): "a mão que movia uma pedra [de xadrez] pega num cigarro que está num cinzeiro e quer a mão quer a câmara sobem para revelar Bogart". Em "Voltando ao Passado" (The Big Shot, 1941), Bogart morre com um cigarro a cair-lhe dos lábios para a mão, e depois para o chão, "numa jogada triplamente mortal".

Mas para Cabrera Infante, de todos eles, os de Holywood de outros tempos, é Bette Davis quem melhor sabe expelir o fumo. A maneira como pega num cigarro já aceso que lhe é oferecido por Paul Henreid em "A Estranha Passageira" ("Now Voyager", 1942) como se fosse "a chave mestra da vida", e depois a maneira como diz "Porquê pedir a lua?"

Apesar de os morder muito, Edward G. Robinson "é o melhor fumador de charutos de todos os tempos e lugares", na opinião do escritor cubano. Sobre as capacidades de representação do charuto de Edward G. Robinson, disse o realizador John Huston: "Acho que a melhor coisa de "Paixões em Fúria" ("Key Largo", 1948), aquela que é recordada por muita gente, é a cena introdutória, com Eddie na banheira, de charuto na boca. Parecia um crustáceo sem a carapaça." Outro aficionado de charutos era Orson Welles, que disse uma vez que fazia filmes para os poder fumar de graça. "É por isso que crio tantos heróis e vilões que fumam charuto", prosseguiu Welles. "Os charutos são a minha fonte de inspiração."

Cabrera Infante estabelece uma curiosa taxonomia entre o tabaco e os seres humanos: "Os charutos grandes assentam bem em homens pequenos, enquanto os cigarros são para os homens altos e o cachimbo é associado a homens medianos: estatura média, meia-idade e classe média. Os mendigos e os ricos preferem charutos; os pistoleiros e as prostitutas preferem cigarros. O cachimbo é para autores de romances policiais e detectives, excepto para Sam Spade [detective criado por Dashiell Hammett], que fazia os seus cigarros."

Sherlock Holmes transformou uma crença supersticiosa numa "ciência", a cineromancia, ou ciência das cinzas, e gabava-se de ser um especialista tão extraordinário neste saber, que tinha escrito "uma pequena monografia sobre as cinzas dos charutos". É com essa ciência que em "O Mistério do Vale Boscombe" Holmes deduziu, com um rápido olhar, que o assassino era "um homem que fumava charutos indianos, com uma boquilha, previamente cortados com um canivete rombo".

Consta que o rebelde mexicano Pancho Villa acordava sempre com um grosso charuto entre os lábios e dava ordens aos seus homens para que fizessem o mesmo. Quem se sentisse tonto era considerado com a mesma deferência que um cavalo coxo nesses tempos revolucionários, ia desta para melhor. Mas para John Reed, no livro "Insurgent México", "Villa não fuma nem bebe". Cabrera Infante vai aproveitando para zurzir nos seus ódios de estimação literários. Um é Jean-Paul Sartre, que desde que visitou Cuba em 1960, começou a ser presenteado por Fidel com uma caixa de havanos: "do grande tirano para o minúsculo filósofo", diz o escritor cubano. Mas depois de 1968 e do apoio de Castro à invasão russa da Checoslováquia, Sartre disse que não queria mais charutos, e Alejo Carpentier (outro escritor), o emissário de Fidel, "não voltou para a embaixada com as mãos a abanar".

Bertolt Brecht não se livra do epíteto "fumador de beatas famoso", devido ao reduzido comprimento dos charutos que fumava, "dava sempre a ideia de que apanhava as beatas na sarjeta" (clara referência à personagem de Charlie Chaplin em "A Quimera do Ouro"/ "The Gold Rush", 1925. O dramaturgo que anos depois viria a ser distinguido com o Nobel, o inglês Harold Pinter, também não escapa à verve de Cabrera Infante; um dos maneirismos de Pinter, "como os fatos castanhos, as camisas cor-de-rosa e as gravatas arroxeadas", era fumar cigarros castanhos, "umas cigarrilhas com um aspecto nojento", com uma "mortalha feita de tecido e tingida de castanho com alcaçuz". "Fuma cigarros perfeitamente normais mas quer que se pense que fuma coisas mais perigosas."

Mas "Fumo Sagrado" é também um livro sobre a história do tabaco, desde a sua descoberta em Outubro de 1492 - quando Cristóvão Colombo aporta em Cuba e um seu marinheiro enviado para explorar a ilha, encontra indígenas que fumavam uma planta seca - até agora. Ficamos a saber, por exemplo, que a palavra "nicotina", o principal alcalóide do tabaco, deriva do nome do embaixador de Catarina de Medici em Portugal, Jean Nicot. E há muito, mas muito mais sobre charutos: como são feitos, os tipos, as diferenças, os comprimentos, as marcas, como cortar a "tampa", etc. Este é um livro para fumadores e para abstémios.

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