"Em Portugal o excesso de Iluminismo produziu muitas vezes o obscurantismo"

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A nova "História de Portugal" coordenada por Rui Ramos recapitula os 900 anos do país, propondo releituras heterodoxas de acontecimentos tão fundadores como a crise de sucessão de 1383-85, a expansão ultramarina ou a Revolução Liberal de 1820. Em entrevista, Rui Ramos analisa a grande construção desses 900 anos: a "inerradicável" pluralidade do país

O que muda na imagem que fazemos de Portugal e da sua história com esta nova "História de Portugal" que Rui Ramos coordenou e escreveu em conjunto com Bernardo de Vasconcelos e Sousa (época medieval) e Nuno Gonçalo Monteiro (época moderna)? Não muito para quem tenha acompanhado a historiografia recente, imenso para quem apenas se recorda dos livros escolares ou das "lições" de José Hermano Saraiva.

Na verdade, como referiu Rui Ramos durante a longa conversa que tivemos no seu acanhado gabinete do Instituto de Ciências Sociais, a ideia de escrever esta História de Portugal num só volume nasceu de os autores terem tido "a percepção de que havia um grande desfasamento entre aquilo que os historiadores foram descobrindo nos últimos 20 anos e aquilo que passou para o grande público, mesmo o público culto". A História tornara-se uma disciplina muito universitária e a relação entre os especialistas e o mundo não académico deslaçara-se. Daí a ambição, assumida por Rui Ramos, de escrever uma "História de Portugal" que, embora integrando o saber da nova historiografia, procura "seguir as linhas de raciocínio das diferentes épocas históricas e entender como os grupos e os indivíduos agiram à luz da forma como pensavam e não seguindo quadros de pensamento contemporâneos".

Porque decidiram começar logo com o Condado Portucalense, e não com os romanos ou os lusitanos?

Porque esta é uma História de Portugal, não uma história dos acontecimentos, das culturas e dos processos que existiram no território português antes da origem de um poder político determinado - o que existe desde D. Afonso Henriques -, poder esse que daria origem ao que hoje chamamos Portugal. Não quisemos fazer uma história deste território desde os tempos primordiais, mas de Portugal enquanto identidade colectiva criada por um processo político que começou com a fundação do Estado. Claro que a nação se construiu sobre uma base pré-existente, só que não existia qualquer elemento que pudesse determinar o que viria a ser o Reino de Portugal. Nesta obra não projectamos na história portuguesa o tipo de modelo oitocentista e novecentista de nação que antecede e exige a formação dos Estados.

Refere-se ao modelo inspirador dos movimentos nacionalistas pós-Revolução Francesa?

Sim. Foram movimentos culturais e políticos que visavam criar Estados que correspondessem a nações. Ora não foi esse o processo de criação do país que somos.

Foi até quase o contrário...

Com os contornos que tem na Península, Portugal é um Estado-Nação perfeito mas que foi criado pelo poder político ao longo de séculos. A nossa identidade nacional foi sendo criada em articulação com o poder político. O poder político antecede a Nação ao ponto de a passagem do Condado Portucalense a Reino de Portugal ter sido protagonizada por uma família vinda da Borgonha, que nem raízes tinha no território.

Mesmo assim estamos perante uma situação única: há quase 700 anos que as nossas fronteiras não sofrem alterações e, ao mesmo tempo, o país tem uma só língua e a esmagadora maioria da população assume pertencer a uma só religião. Essa não era a situação de partida...

Não, de todo. A única divisão política imediatamente anterior era o Condado Portucalense. E ao rectângulo que se formou no século XIII nunca tinha correspondido antes, nem no tempo dos romanos nem no dos reinos visigóticos, qualquer área que se lhe sobrepusesse. Por outro lado, não encontramos nenhuma uniformidade de paisagens...

...ou mesmo de tipo de ocupação do solo, de cultura. Há uma grande diferença entre o Portugal Atlântico e o Portugal Mediterrânico...

O Orlando Ribeiro definiu isso com muita clareza e o José Mattoso, na "Identificação de um País", tornou isso central na caracterização de Portugal. Esses estudos impedem-nos de considerar que o país é um todo homogéneo e hoje até sabemos mais: sabemos, por exemplo, que há uma variação genética importante entre as populações do Norte e as do Sul. Ou seja, temos um território que é produto da acção de um poder político, que o define e nele incorpora as populações muçulmanas e judaicas que viviam no Sul, por exemplo.

Nesta obra, no período referente à I Dinastia, escreve-se que as relações entre os nobres e o Rei foram muito mais conflituosas do que estávamos habituados a pensar, até porque em Portugal não se chegaram a criar estruturas do tipo feudal.

De facto os nobres viam o Rei como uma espécie de "primus inter pares" e o clero via-o como alguém que lhe estava submetido, pelo que o Rei tem, desde o início, de afirmar um poder público para além dessas duas referências mais tradicionais. O que os nossos reis medievais fazem são sucessivas combinações políticas, com maior ou menor sucesso, chegando a produzir nobreza e a instalar bispos, tudo para afirmar a sua soberania. Nunca temos o Rei contra os nobres, mas o Rei com uns nobres contra outros nobres, quase sempre com o apoio dos concelhos, a que iam dando cartas de Foral. É preciso notar que a afirmação deste poder segue a par com a recuperação do Direito Romano, com a concepção de um poder público que é distinto do poder feudal e das relações de vassalagem. É um poder público que se instala para servir o bem comum e não para servir nenhum grupo, nem sequer a nobreza de Entre-Douro e Minho, que sempre considerou que tinha sido ela a fazer o Rei.

Continua válida a interpretação da crise dinástica de 1383-85 segundo a qual foi o povo que se colocou ao lado do Mestre de Avis contra os nobres aliados a Castela? A revolta dos artesãos e comerciantes de Lisboa pode ser vista, como a viu Álvaro Cunhal, como uma proto-revolução burguesa?

Já nenhum medievalista sustenta essa tese. Não só não podemos aplicar as categorias sociológicas do século XX ao século XIV, como havia nobres dos dois lados. O que se passou foi que a nobreza mais estabelecida, a que estava nos lugares de topo, seguiu as regras de sucessão e apoiou as pretensões de Castela, ao mesmo tempo que outros nobres, como Nuno Álvares Pereira, que tinham menos a perder, tomam o partido do Mestre de Avis. Os argumentos que se utilizam para tentar convencer os partidários de D. Beatriz são muito variados e não apenas os referidos no século XIX, sob a influência dos nacionalismos europeus, quando se sublinhou muito o facto de o Mestre de Avis ser natural do Reino. Na época esse foi apenas um entre muitos argumentos trocados. Por exemplo: a facção do Mestre também criticava os adversários por, na época, os reis de Castela terem ficado do lado dos "hereges" no cisma que então abalou a Igreja de Roma... Também não podemos falar de nenhuma revolução, antes da utilização do povo de Lisboa, como voltaria a ocorrer em 1580, em 1640, ou mesmo em 1910. Nem foi essa movimentação popular que, depois, nas Cortes de Coimbra, sustentou a argumentação de João das Regras. O que ele defendeu foi que o trono estava vago, que todos os pretendentes eram ilegítimos, e que por isso as Cortes podiam escolher o melhor - e o melhor era o Mestre de Avis.

A II Dinastia é marcada por uma sucessão de casamentos cruzados entre as coroas de Portugal e de Castela que, mais tarde ou mais cedo, poderia dar origem à unificação dos reinos. Isso acaba por suceder com Filipe II e este, através do Pacto de Tomar, outorga a Portugal algo que definem como uma "quase Constituição". Esta visão não contraria a ideia de "usurpação" que associamos à III Dinastia?

Esse ponto é muito importante pois a verdade é que, nessa época, os reis - e não só os reis de Portugal - tinham de si próprios uma visão providencialista, para além de procurarem a sua grandeza e glória pessoais. O poder político foi produzindo a nação mas durante muito tempo não se identificou com ela. Na época havia patriotismo - basta ler "Os Lusíadas" -, mas não é o mesmo patriotismo dos séculos XIX e XX, quando este passou a estar associado à noção de soberania nacional. O que Nuno Monteiro [o historiador que escreveu esta parte do livro] faz nesses capítulos é ler as relações entre a Casa de Avis e a Casa de Habsburgo tal como eram lidas na época e não como foram lidas nos séculos XIX e XX, em que foram interpretadas à luz do nacionalismo da época e o período passou a ser visto como o do "cativeiro espanhol". Ora o que os contemporâneos discutiam era a legitimidade dos reis, e Filipe II impõe-se não apenas porque era mais forte, mas porque era legítimo por via da linha de sucessão, e porque reconheceu a especificidade de Portugal. Na monarquia dos Habsburgos foi sempre claro que Portugal era um reino herdado, não era um reino conquistado. Os próprios portugueses, na época, estavam sempre a recordá-lo e a sublinhar que o estatuto reconhecia a vida autónoma do Reino de Portugal. O que é que mudou em 1640? Filipe IV, III de Portugal, e o Conde-Duque de Olivares passaram a centralizar o poder em Madrid, quiseram "castelhanizar" toda a Península, e assim violaram o pacto constitucional consagrado em Tomar. Quando o rei se torna tirano, a "Restauração" surge como uma revolta constitucional. A leitura nacionalista veio muito mais tarde...

Na apresentação que fez do livro, António Barreto referiu que, ao longo dos séculos, as elites, progressistas ou reaccionárias, esbarravam "numa sociedade de valores e comportamentos atávicos". Sente o mesmo?

Essa percepção surge sobretudo nos séculos XIX e XX, se bem que já tivesse sido esboçada com o governo pombalino, um governo que não se via limitado pelas tradições e tinha como única fonte de direito o poder do Rei. A partir desse primeiro momento, sempre em nome do "bem comum", o poder político pôde permitir-se "transformar a sociedade". No século XIX, com os liberais, essa ambição afirma-se em toda a sua extensão: quer-se mudar a sociedade, os comportamentos, os valores dos portugueses. Surgem elites mais ou menos iluminadas que, à frente de uma máquina burocrática cada vez maior - a do Estado -, têm um programa de transformação. Só que, de forma repetida, começam a queixar-se de que não o conseguem fazer.

O período da expansão, a era dos Descobrimentos, não foi muito desenvolvido no livro. Porquê?

É verdade que não desenvolvemos a história dos Descobrimentos, mas a expansão ultramarina está bem presente. Tivemos de fazer muitas opções, de deixar de parte muitos relatos, pelo que a preocupação foi enquadrar os acontecimentos no fio da história portuguesa e sublinhar a importância que o Ultramar, o Império, teve nela. Penso, por exemplo, que esta é a primeira História de Portugal onde se sublinha a dimensão intercontinental da monarquia no tempo dos Braganças, e ainda muito antes da ida da Corte para o Brasil. Mais: ao abordarmos a Revolução Liberal, abordamos não apenas aquilo que é tradicional abordar - as ideias dos seus protagonistas -, mas também o facto de esta ter de lidar com a realidade e os problemas de um Estado intercontinental. Nesta História não se esquece que, desde a conquista de Ceuta até à saída de Macau, a nossa história não é a história deste rectângulo europeu. Até porque, como dizia Rodrigo de Sousa Coutinho, o Brasil era a maior e a melhor parte do Reino e isso é central no nosso relato.

O discurso sobre Portugal é, há muito, marcado pela ideia de declínio, de decadência. É um discurso com fundamento histórico?

O discurso do declínio surgiu ainda antes de Pombal, até por na época, sob a influência de uma visão protestante ou "iluminada", se atribuir o atraso ao catolicismo, o que levará o Marquês a expulsar os Jesuítas.

Isso era o discurso. E a realidade?

Arriscaria que nenhum dos autores desta "História de Portugal" acredita na tese da decadência tal como tem sido formulada. Até porque temos de perceber o que foi realmente o nosso período áureo. O Vasconcelos e Sousa, por exemplo, quando aborda a Expansão, deixa muito claro que um dos factores que a determinam é a pobreza e a pequenez do país. Era o caminho que podíamos tomar depois de terminada a reconquista. Por outro lado não é verdade, como escreve Nuno Monteiro, que mesmo no seu apogeu Portugal fosse uma grande potência. Tivemos sempre de jogar com os diferentes poderes e aproveitámos apenas uma janela de oportunidade. Mal apareceram concorrentes mais fortes deixámos de ser uma potência determinante no Oriente. Pensar que podíamos manter o domínio do Índico para lá do século XVI é pensar que tínhamos uma força que nunca tivemos.

Mas passou por cá uma enorme quantidade de riqueza que não criou raízes. Porquê?

Esse período não é a minha especialidade, mas muito provavelmente não criou raízes porque Portugal já era um país pobre, e já então quando se atirava dinheiro para cima de um país pobre ele desaparecia. E éramos um país pobre no sentido em que não possuíamos estruturas para produzir riqueza de forma auto-sustentada. O dinheiro que por cá passava era utilizado pelas elites para comprarem luxos onde eles eram manufacturados: no Norte de Itália, no Norte da Alemanha e nos Países Baixos. Regiões que são ricas hoje como o eram no século passado ou no século XVI. Ou mesmo no século XII. Basta olharmos para as nossas igrejas medievais e para as nossas obras do Renascimento e ver o que se fazia nesses países.

Então porquê os discursos sobre a decadência?

Têm muito a ver, por um lado, com discursos de redenção que foram importados da Europa continental e que atribuíam a decadência ou à Monarquia ou à Igreja - ou depois à República. Por outro lado, resultam da comparação dos níveis de vida.

Como explicar a capacidade de outros países europeus que eram pobres, marginais e muito atrasados mas saltaram para o pelotão da frente?

O que a investigação de história económica mais recente nos mostra é que houve quase sempre limitações de recursos e de oportunidades em Portugal. Quando existiam oportunidades, os portugueses sabiam agarrá-las - quanto mais não fosse emigrando. Por outro lado, no momento decisivo do salto em frente no século XIX, Portugal não tinha um conjunto de recursos naturais muito importantes, a começar pela impossibilidade de produzir, a preços competitivos, os alimentos mais procurados. Só tínhamos o vinho, mais nada. Há também outras razões, algumas delas culturais: também não tínhamos gente preparada, gente letrada em quantidade suficiente.

Porquê? Porque nos países protestantes se aprendia a ler para ler a Bíblia e isso não sucedia nos países católicos?

Essa explicação não chega, porque os muçulmanos lêem o Corão e não é por isso que se tornam mais letrados. Há é uma outra explicação, que nunca é referida: nenhum desses países que conseguiram uma alfabetização de massas durante o século XIX o fez contra a Igreja; foi sempre em articulação com ela. Ora em Portugal, primeiro com os liberais, a partir de 1820, e depois com os republicanos, o Estado não só tentou alfabetizar a população contra a Igreja, como entendia que a alfabetização era um veículo para substituir a educação religiosa por uma educação cívica formatada em Lisboa. As ordens religiosas, que em muitos países foram fundamentais para criar uma rede de escolas, em Portugal não podiam sequer ensinar a ler durante a Monarquia constitucional. Ou seja, tínhamos na Igreja uma instituição que podia ter sido fundamental para a alfabetização da população e preferimos chamar tudo para a alçada do Estado, que não tinha recursos e, portanto, falhou.

Foi por um excesso de Iluminismo que se produziu o obscurantismo.

Portugal foi um país que nunca estimulou os homens livres. Pelo contrário, sempre houve uma tendência para ricos e pobres se encostarem ao Estado. Porquê?

Uma explicação para isso tem a ver com a dimensão ultramarina de Portugal, que permitiu que o Estado se soltasse da sociedade. O Estado não necessitava de cobrar impostos nem de estimular o desenvolvimento, pois os proventos não lhe vinham da metrópole mas da pimenta das Índias ou do ouro do Brasil. Isso criou um poder político centrado em Lisboa, transformada quase em cidade-estado onde tudo se passava, à margem de um interior rural e pobre com que ninguém se preocupava. E quem queria pertencer à elite tinha de vir para a Corte. A nossa aristocracia, ao contrário da aristocracia inglesa ou da aristocracia prussiana, não era terratenente, vivia de rendimentos públicos. Houve sempre um Estado maior do que o país e do que a sociedade devido à realidade ultramarina. Quando se perde o Brasil, passamos a ter um Estado que desconfia da sociedade, que acha que ela não se sabe governar. Encontramos essa mentalidade nos liberais, nos republicanos e nos salazaristas. Todos entendem que têm a missão histórica de arrastar a sociedade para o que entendem por bem comum. Lutam os liberais e os republicanos contra uma sociedade que vêem como tradicionalista e reaccionária, lutam os salazaristas contra uma sociedade que vêem como individualista e anárquica.

Todo esse discurso aponta para um momento de corte, como se houvesse um Portugal do Antigo Regime e um Portugal pós-Revolução Liberal. É isso?

Sim, e esta é porventura uma das novidades desta "História de Portugal" para alguns leitores: a grande revolução em Portugal nos últimos 200 anos foi a Revolução Liberal, foi aquela que mudou realmente o mundo político e cortou todas as pontes com o passado.

Mais importante do que o 5 de Outubro?

A implantação da República é um detalhe quando a comparamos com o que significou a Revolução Liberal. Há um país antes de 1820, ou mais exactamente antes de 1832-34, e outro depois. Na República não mudam os paradigmas, com o triunfo da Revolução Liberal mudou tudo na relação dos portugueses com o Estado. Como disse Almeida Garret, foi nessa altura que um Portugal Velho acabou e começou um Portugal Novo. Todas as instituições, algumas delas seculares, desapareceram. Até acabou a velha relação das pessoas com a terra, que não correspondia à ideia de propriedade individual e absoluta dos dias de hoje. O mapa dos concelhos é todo alterado, na prática destruiu-se um poder municipal que vinha desde o nascimento do país. É também então que começa realmente a separação de poderes. Mas a "maior revolução social da história portuguesa", como se lhe referiu Alexandre Herculano, também destruiu as condições para um equilíbrio entre o Estado e a sociedade que permitisse a modernização, no contexto de uma sociedade tradicional que vai evoluindo sem destruir.

1832-34 é o nosso 1789, a nossa "revolução francesa"?

Oliveira Martins foi o primeiro a dizê-lo. O Portugal Velho acabou de uma maneira abrupta, violenta, com uma guerra civil, tornando inviáveis todos os arranjos que estavam implícitos na Carta Constitucional. A possibilidade de uma evolução à inglesa, em que houvesse sempre os pólos de poder alternativos e concorrentes ao Estado de que falava Tocqueville, desapareceu também nessa altura. Outro aspecto que sublinhamos, e que muitas vezes foi desvalorizado, é a importância da questão religiosa, que não teve a ver com poderes ou determinismos económicos mas derivou de haver muita gente que estava disposta a matar ou a morrer em defesa da Igreja, tal como outros estavam dispostos a matar ou a morrer em defesa do anti-clericalismo.

O Estado, além de criar a nação, também a homogeneizou. Isso passou pela integração de um Sul que era sobretudo muçulmano e tinha uma forte presença judaica. Ora se os judeus são bem acolhidos em Portugal na Idade Média, depois acabam por ter de fugir ou de se converter. Nesse momento a homogeneização não funcionou contra uma das possibilidades que o país tinha de ser menos pobre?

Uma coisa é a violência da expulsão, a violência da Inquisição contra os cristãos-novos, outra coisa é pretendermos encontrar factos que, só por si, expliquem a nossa história toda, e todas as nossas dores, desde D. Afonso Henriques até José Sócrates. Sem dúvida que o país perde na altura parte da sua elite, mas a Inglaterra também a tinha perdido quando dois séculos antes expulsara os judeus e nunca ouvi nenhum historiador inglês queixar-se disso. Penso que para analisarmos certas situações contemporâneas é melhor não nos socorrermos de factores demasiado ancestrais. No nosso passado há de tudo, quer esses momentos de intolerância, quer uma época mais pluralista. E mesmo a tolerante Inglaterra conheceu períodos de uma intolerância gigantesca no século XVI, com terríveis perseguições religiosas.

Ou seja, não temos de ir buscar à História ou à Economia razões para defender a tolerância religiosa e o pluralismo - devemos defendê-la porque é a atitude correcta. A história não deve ser um arsenal ideológico para justiçar esta ou aquela opção actual. E esta é uma "História de Portugal" feita por historiadores que procuram explicações limitadas ao contexto das diferentes épocas e integrando a perspectiva dos contemporâneos.

Lemos esta "História de Portugal" e, no fim, podemos ficar com uma ideia do que é a identidade nacional? Há uma identidade nacional?

Há uma identidade portuguesa a que os portugueses são sensíveis.

Uma identidade pela positiva ou uma identidade contra: "contra Castela", "contra os reinos mouros"?

Todas as identidades são construídas contra: somos alguma coisa porque não somos outra coisa que existe ao lado. Quando falamos, a propósito de história, sobre o que é a nossa identidade, não é a identidade negativa - somos portugueses porque não somos espanhóis - que perturba: o que perturba é interrogarmo-nos sobre o nosso destino. Houve muitas tentativas de criar uma identidade providencialista, sebastianista, houve um discurso sobre os portugueses estarem destinados a criar o Quinto Império. Com o salazarismo, éramos o povo capaz de criar sociedades luso-tropicalistas, na Expo-98 fomos os pioneiros da globalização... É por não encontrarmos hoje uma "missão" que também surge, muitas vezes, o discurso da decadência. Ora o que esta "História de Portugal" nos mostra é que os portugueses foram portugueses de várias maneiras. Temos uma longa história comum e expressamo-nos na mesma língua, o que é muito importante pois uma língua é também uma visão do mundo.

O que quer dizer que...

Portugal nunca teve um problema de identidade como outros. Nunca houve alternativas diferentes da que foi sendo gerada pelo poder político. Nunca existiram, por exemplo, identidades regionais fortes e houve uma homogeneização religiosa - os muçulmanos desapareceram, os judeus foram obrigados a converter-se -, sendo que a religião nunca foi um factor de separação face aos nossos vizinhos. Mesmo hoje não temos grandes comunidades de outras religiões ou de outras etnias para que possamos, verdadeiramente, testar aquele lugar-comum de que os portugueses não são racistas.

O que é que alguém que queira pensar Portugal hoje pode retirar desta História?

Pode perceber que Portugal não começou ontem, que existem condicionantes que vêm do passado, pode até verificar que algumas soluções já foram tentadas no passado, como os programas desenvolvimentistas de obras públicas, e que não deram resultado. Mas a história também é importante para percebermos a nossa inerradicável pluralidade. Não permite um discurso uniformizador sobre "o português"...

Então livros como "O Medo de Existir", de José Gil, não fazem sentido...

Tenho sempre uma enorme dificuldade em compreender as obras que passam por uma antropomorfização de Portugal, como se Portugal estivesse ali ao lado sentado a tomar café. Há dez milhões de portugueses, logo há dez milhões de maneiras diferentes de se ser português. A alternativa a esse discurso é uma História de Portugal que não procura uma explicação filosófica geral. Temos muitas coisas comuns, mas o fado é de Lisboa e o vinho verde tinto é do Norte Litoral. Não tentemos esconder a pluralidade nem substituí-la por uma qualquer leitura secular do velho providencialismo divino.

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