Istambul, estranha forma de vida

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As obras de Orhan Pamuk e de Nâzim Hikmet, os dois maiores escritores turcos, levam-nos ao cinema de Ceylan e Fatih Akim, às fotografias de Ara Güler ou de artistas contemporâneos turcos. Isto no festival "Pontes para Istambul" que começa dia 1 no CCB. O Ípsilon viajou pelo imaginário da cidade, e conheceu turcos que se perdem por Lisboa, e portugueses que amam Istambul, para perceber essa estranha forma de vida de uma cidade na confluência dos mundos

De que lado estamos quando estamos no Bósforo? Em Istambul estamos como um corpo despedaçado, pé num continente, pé no outro, à espera de encontrar uma solução para uma crise de identidade: somos asiáticos ou europeus? O coração está na tensão dos vários todos que fazem de Istambul um espaço de confronto entre "a tentação do Ocidente e a fidelidade ao Oriente", diz António Mega Ferreira, presidente do Centro Cultural de Belém.

É a Istambul, este ano Capital Europeia da Cultura, que o CCB dedica o festival "Pontes para Istambul" que começa dia 1 de Março, inserido no ciclo iniciado em 2009 com Buenos Aires, o das cidades literárias. São "grandes centros de cultura ou cidades mitificadas pela literatura", explica Mega Ferreira.

No festival, andamos sempre em volta dos maiores escritores turcos do século XX e XXI, Nâzim Hikmet e do Nobel da Literatura 2006, Orhan Pamuk, cantores da cidade, mesmo quando estamos a falar de cinema, de artes plásticas ou de fotografia. Porque eles representam a tradição e a modernidade turcas: Pamuk dialoga com as fotografias de Ara Güler, cineastas contemporâneos apropriam-se do seu romance "Neve", encenadores, leitores, e realizadores envolvem-se com a vida e obra de Hikmet, a cidade ganha vida(s) através das várias pontes entre as artes, os tempos e a história.

Sedimentos, camadas

"Fundada" pelo deus grego Poseidon em 675 a.C., na história da Turquia tudo passa por Istambul: foi a capital do império Romano, do Bizantino e do Otomano. Foi Augusta Antónia, Bizâncio, Constantinopla e Istambul, cidade imperial e republicana, "quintessência da Turquia", diz Mega Ferreira. Istambul é restos de impérios, sedimentos acumulados, camadas.

Nessa "fascinante e extraordinária sobreposição de civilizações", como Roma, talvez se pareça com Lisboa.

Istambul é o Bósforo. Não é só a ponte entre continentes. É o estreito entre o mar Negro e o Mediterrâneo, entre o Corno Dourado visto da ponte de Gálata e o mar de Mármara; entre os islâmicos, os cristãos e os ortodoxos gregos; entre os arménios, os gregos, os romanos, os persas, os espartanos, os romenos, os russos, os árabes. É Sultanahmet, onde o coração dos bizantinos se encontra com o dos otomanos, e onde a imponente mesquita azul se levanta por cima do casario. É o grande bazar, judeus em Balat e gregos em Fener, as ruas comerciais de Beyoglu. É a Ásia, passando as pontes sobre o Bósforo, subúrbios verdes de populações migrantes da Anatólia rural, famílias grandes e mesquitas de bairro.

Para Nulifer Kuyas, jornalista e ensaísta turca, Istambul resume-se na história do seu bisavô, "um 'gentleman' europeu que usava turbante, médico, professor numa escola religiosa, mas também trabalhador da câmara municipal, amava o teatro e foi ver Sarah Bernhardt actuar no final do século XIX". Este bisavô podia estar no "Istambul" de Orhan Pamuk, escritor da mesma geração de Kuyas, 56 anos, filha de uma família da cidade. O bisavô de Kuyas representa essa "Turquia modernizada, ocidentalizada nos últimos anos do império Otomano". Viajantes, poetas, nómadas, contrabandistas, guerreiros, escritores e diplomatas passaram por esta cidade "cosmopolita", "apocalíptica" e "multicultural", descreve Kuyas, "espaço dual, real e duro, ao mesmo tempo onírico", num estado constante de "'carpe diem', vivendo plenamente a vida, à espera do grande terramoto".

Nessa espera apocalíptica, talvez se pareça com Lisboa.

Houve tremendas transformações: na infância de Kuyas, eram dois milhões. Hoje são onze, doze, treze, não se sabe ao certo devido às populações flutuantes, megalópolis de arábias utópicas.

Istambul é a singularidade na diversidade, "é como se tivesse muitas cidades dentro", "cheia de tempos, no mesmo tempo e ao mesmo tempo", explica o escritor Paulo José Miranda, que lá viveu cinco anos, após vencer o prémio José Saramago em 1999. Narra as suas manhãs: "Levantava-me cedo e escrevia. Acabaria por sair na hora de almoço e descia até ao Bósforo, onde o ambiente é muito calmo". Aí, restaurantes de luxo e mansões convivem com pescadores e casas de chá, "bebia chá nas esplanadas, vinte cêntimos a chávena, ficava lá muito tempo". Asli Gomes, turca, 31 anos, casada com um português, também nos diz que é "de tomar chá a ver o Bósforo que mais sente saudades".

Duas gerações literárias

Se para Kuyas é certo que Istambul sempre pertenceu à Europa, a verdade é que, para a Europa, Istambul e a Turquia serão sempre "o outro".

"Se você nasceu na cidade, cresceu e viveu aqui toda a sua vida, não há dúvida que se sente europeu", diz. Esse era o projecto da República de Ataturk de 1923, a Turquia moderna, decretando o fim do império Otomano, abandonando o regime islâmico, tornando-se parlamentar e laica. Com ele, a economia cresceu, o alfabeto mudou, as mulheres puderam ir à escola. Mas essa ocidentalização foi também feita de forma violenta, o genocídio arménio (1915) e a repressão sobre os curdos documentam-no.

Nessa tensão identitária que é ser turco, para além da ponte ocidente-oriente, está também a narração dos factos, e as consequentes perseguições políticas. Foi assim com Nâzim Hikmet, o maior poeta turco do século XX, nos anos 30 e 40; é assim hoje com Pamuk, a face da Turquia moderna, duas gerações literárias de abertura e resistência.

Hikmet foi um dos primeiros a falar dos massacres sobre os arménios. Passou vários anos em prisões por ser comunista. Amado pelos intelectuais de esquerda (Picasso, Neruda e Sartre dedicaram-lhe um manifesto), foi libertado, fugindo do país em 1950. Chamaram-lhe traidor, a Turquia retirou-lhe a nacionalidade (reposta em 2009). Morreu no exílio em Moscovo, em 1963. A sua poesia, a maioria escrita no exílio ou em celas de cadeias, é o expoente do modernismo turco, de verso livre e revolucionário.

"Esta tensão entre a política e a cultura nunca deixou de existir na Turquia e queremos recuperar essa discussão no festival", diz Mega Ferreira. Cinquenta anos depois de Hikmet, Pamuk também foi perseguido por reconhecer numa entrevista em 2005 (um ano antes do Nobel) a existência do genocídio arménio, facto ainda hoje negado pela Turquia. Zeynep Elman, turca, 26 anos, estudante de cinema, reconhece que a escrita de Pamuk está "mais próxima da tradição literária europeia".

"Na Turquia, muitos poderão dizer que ele não é um verdadeiro patriota, mas convém lembrar o seu discurso do Nobel, para perceber quanto ama a Turquia", diz. José Riço Direitinho, que no festival vai ler Istambul nos livros de Pamuk, lembra que, apesar da perseguição, o escritor "fez questão de ficar, toda a gente sabe onde mora e nunca quis sair de Istambul".

A indecisão dos turcos em relação a Pamuk é também uma "espécie de esquizofrenia desse país entre essas duas coisas, o desejo de pertencer a uma Europa que os rejeita", considera Mega Ferreira. Para Direitinho, Pamuk "não consegue posicionar-se nessa dicotomia, é um conflito pessoal que é também o da Turquia". Diz que Pamuk "força muito" a admiração por escritores como Dostoiévski ou Kafka, "para se mostrar mais europeu", mas a verdade é que se em "Neve" está muito próximo da tradição e do islamismo, em "O Meu Nome é Vermelho" há um fascínio pela velha Europa. "É como se ele estivesse na ponte sobre o Bósforo, e ora corre para um lado, ora corre para o outro, mas não consegue sair da ponte."

Casa de Ceylan,  sonho de Akim

Apesar de Istambul ser, diz Kuyas, um "microcosmos da Turquia", há um enorme contraste entre a cidade e o mundo rural. Essa é uma das temáticas das instalações de artistas contemporâneos apresentados no festival. É esse contraste que Nuri Bilge Ceylan (o mais internacional realizador turco) retrata nos seus filmes, sobretudo na trilogia "A Aldeia" (1997), "Nuvens de Maio" (1999) e "Longínquo" (2002): os dois primeiros estreiam-se em Portugal no CCB. Ceylan foi fotógrafo antes ser realizador. Para Elman, isso é uma qualidade: "Todos os realizadores devem ter o olho de um fotógrafo e laços com a literatura. Parece-me que o cinema de Ceylan está mais próximo da literatura. Aliás, adoraria ler os seus livros", diz, com humor. É essa ligação que torna "a sua linguagem cinemática muito misteriosa e os seus filmes interessantes".

Asuman Suner, professora na Universidade Técnica de Istambul e autora do livro "New Turkish Cinema", explica que Ceylan resume os grandes temas do cinema turco contemporâneo: a questão da pertença, do lar, do nomadismo e das migrações internas na Turquia. Muito do seu cinema "é autobiográfico: também teve uma família na província, e fala sobre ser um artista na grande cidade, lidando com a solidão e a necessidade de pertença". Istambul é "espaço claustrofóbico, uma armadilha", mas quando se sai para o campo "há o desejo de regresso", conta. É assim que Asli Gomes, a viver no Bahrein, nos descreve o sentimento de ausência de Istambul: "A cidade em si é um caos, toda a gente sonha com partir. Mas ninguém consegue. Há uma impossibilidade real de deixar Istambul, que nos agarra sempre de volta".

Como Istambul, é nessa identidade hifenizada que o cinema do germano-turco Fatih Akim, se encontra: entre a tradição dos pais e a modernidade alemã, há uma Istambul sonhada nos seus filmes: "Apesar de ter nascido na Alemanha, Akim parece sucumbir à tentação de Istambul. Na Turquia, é visto como realizador turco", diz Suner. O festival vai apresentar "Cruzando a Ponte: o Som de Istambul", documentário em que Akim é seduzido pela sobreposição de sons na cidade.

O cinema turco está num momento de expansão: a Turquia é um dos países com maior produção doméstica. "No 'box office', são os filmes turcos que dominam", explica Suner. Elman concorda: "Pela primeira vez, temos mais cinema turco do que americano nas salas". "Honey", de Semih Kaplanoglu, acabou de vencer o Urso de Ouro em Berlim. É a história de uma criança que deixa de falar quando pai parte em busca de trabalho. Novamente: migrações, desejo de pertença, lar.

Hüzün

"Para mim, foi sempre uma cidade de ruínas e de uma melancolia de fim-de-império. Passei a minha vida a lutar contra esta melancolia, ou, como todos os habitantes de Istambul, a fazê-la minha". Pamuk escreveu assim na sua autobiografia "Istambul", uma espécie de "apreensão da alma da cidade a preto e branco", como nas fotografias de Ara Güler, fotojornalista da Magnum, que a exposição "Istambul perdido" apresenta no CCB.

Aqui Pamuk fala de "hüzün", melancolia, sentimento que se parece com a saudade e que documenta a estranha forma de vida da cidade.

Nesta viagem por Istambul, conhecemos turcos que se perdem por Lisboa, como Asli, que, como num livro de Calvino, nos diz: "Apesar de ser a primeira vez, em Lisboa, sinto que já conheço esta rua, sei onde vai dar porque já estou em Istambul". Sim, é isso que Pamuk quer dizer quando diz que Istambul é a "silhueta de uma miragem sempre em transformação" ou, nas suas deambulações, que é sem-centro ou infinita.

João Romão, 41 anos, realizador do documentário sobre a Turquia, "Vizinhos", Pedro Gomes, 32 anos, fotojornalista e marido de Asli, e Paulo José Miranda: todos viveram em Istambul por amor a uma turca.

Se para Miranda Istambul não lembra Lisboa - "temos sempre tendência de ir buscar o que conhecemos para explicar o que não conhecemos" -, para Gomes o Bósforo é uma espécie de Tejo. "Em qualquer ponto de Istambul se vê o Bósforo, como de Lisboa se vê sempre o Tejo." Acrescenta: "Tenho fotos das pontes que podiam ter sido tiradas em Belém".

Nilufer Kuyas, que nunca veio a Lisboa, diz-nos que o que une Istambul a Lisboa é a condição de extremidade, onde a Europa acaba e começa. Aqui, Miranda concorda: "São duas cidades de impérios extintos. Há, em ambas, uma certa nostalgia por uma Europa perdida ou nunca realizada". Será isto "hüzün"?

Na saudade, está-se sozinho. Em "hüzün", a melancolia turca, é-se só, perdido na multidão: "Vive-se intensamente, tem um ritmo incrível, as pessoas movimentam-se em tensão, chocamos uns contra os outros, de manhã, à tarde, de madrugada", conta Romão. Que fazem os turcos na rua? "Vêem", responde Miranda. Istambul é cidade "sem metafísica", onde se presta "o culto ao verbo ver". Não é bem um "ser visto", isso não é importante. É uma "noção de horizonte" diferente da de Lisboa, são janelas de vidro, para ver, contra as cortinas. "Os turcos estão nas esplanadas, estão nas ruas. O mundo está na rua, a andar e a ver", diz. Como naquela foto de Güler, três homens sobre a ponte de Gálata, parados a ver o Bósforo passar.

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