As lendas só são lendas porque acreditamos nelas

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Trasno - Colecção do Museu do Prado

Três dezenas de especialistas internacionais em lendas reuniram-se na casa do marquês de Fronteira, em Ponte de Sor. E concluíram: as lendas são histórias verdadeiras e não pertencem a um mundo perdido. Estão vivas e continuamos a acreditar nelas

Os especialistas em lendas estão reunidos à volta de uma mesa e o marquês vai moderando a discussão, com uma campainha. Falam em várias línguas românicas embora esteja presente um alemão que não percebe nada. É de propósito. Ele é o "inimigo". Poderiam exprimir-se em inglês, língua que ele entenderia. Mas não. Usam o castelhano, o francês, o português, o galego ou o catalão. Inglês - é ponto de honra - nunca.

"Mesdames et messieurs, la discussion est ouvert", diz, num tanto autoritário, o 11.º marquês da Fronteira, D. Fernando Mascarenhas, tocando o sininho. A galega Camiño Noia Campos, catedrática da Universidade de Vigo, acabou de expor as suas conclusões sobre o que caracteriza uma lenda, por oposição ao conto. E em suma era isto: a lenda é verdade. Um conto surge da imaginação, consiste numa história ficcionada. No caso da lenda, a história aconteceu mesmo. Quem a conta, pelo menos, não tem dúvidas sobre isso. Conta-a como tendo acontecido e, em muitos casos, acontecido consigo próprio, ou com alguém de confiança. Se o contador da história já não acredita na sua veracidade, então já deixou de ser uma lenda. Parece simples: mas não é. Porque a verdade aparece sob diferentes formas. Há vários tipos. Há a verdade normal e a verdade estranha, ou sobrenatural. Camiño, que se exprimiu em galego, que todos compreenderam (menos Hans, o alemão), socorreu-se da tipologia de Tzetan Todorov sobre a literatura fantástica. Mas para os presentes as coisas são mais complexas do que parecem. Qual é realmente a diferença entre fantástico, estranho, maravilhoso, imaginário? "Quando a fantasia faz parte do imaginário das comunidades, isso é realidade", diz um dos participantes do encontro.

"É o caso dos milagres", exemplifica outro.

"Se é uma história que se assume como sucedida, apesar de ser maravilhosa ou sobrenatural, então é uma lenda, não um conto", responde um perito. E outro acrescenta: "O maravilhoso rege-se por leis próprias. O estranho não. Porque faz parte do real. Há histórias em que não se sabe em que mundo estamos."

"Então e o milagroso? Em que categoria é que o incluímos?"

"Ah, isso é o maravilhoso de origem divina, não pagã."

Uns falam em francês, outros em castelhano, outros em catalão. Alguém dá outros exemplos: "O achamento de tesouros, a aparição de fantasmas de mortos, bruxas com poderes, isso são coisas que acontecem."

"Claro, por isso são lendas."

A enorme mesa rectangular tem à volta vitrinas com porcelanas, pratos decorados com pássaros, uma lareira com lenha e uma colecção de caçarolas de cobre sobre a chaminé. Estamos numa casa aristocrática, entre as lezírias do Alto Alentejo, na herdade de Torre das Vargens, próxima de Ponte de Sor e propriedade de Fernando Mascarenhas, marquês de Fronteira. Foi ele que convidou os especialistas de lendas para a sua casa, por ser ele próprio um entusiasta do tema e amigo de longa data de Isabel Cardigos.

Isabel é a coordenadora de um projecto de catalogação do corpus lendário português, no âmbito da Fundação para a Ciência e Tecnologia, do Instituto de Estudos de Literatura Tradicional, da Universidade Nova de Lisboa, e do Centro de Estudos Ataíde Oliveira, da Universidade do Algarve. O catálogo, que foi apresentado neste encontro, tem cerca de 2200 lendas, entre as quais as Lendas etiológicas (de topónimos, flores, fontes, lagos, rios, animais...), Lendas sagradas (milagres, fundação de capelas, punições divinas, santos, aparições, fuga para o Egipto...), Lendas urbanas (um fantasma que pede boleia, roubo de órgãos, xenofobias, assassínios...), Lendas históricas (povoações desaparecidas, romanos, mouros e cristãos, invasões francesas, castelhanos, batalhas, tomada de castelos, piratas, descobertas...) e Lendas do sobrenatural, que envolvem vampiros, sereias, procissões de almas, tesouros, diabo, bruxas, lobisomens, mouras e trasgos (o equivalente português aos trasnos galegos).

Mas é um trabalho ainda incompleto. A compilação das lendas, tal como dos contos, é aliás um processo que dificilmente se pode alguma vez considerar concluído. Há sempre lendas a acrescentar, e outras a excluir, à medida que deixam de ser lendas, ou seja, quando deixa de haver alguém que acredite nelas. Nessa circunstância, passam a ser mencionadas como lendas mortas.

Os contos do Sul

Mas antes das lendas, o que Isabel Cardigos e os seus colegas se dedicavam a estudar e coligir eram os contos populares. Começaram a fazê-lo, em relação ao Sul da Europa, em reacção ao esforço que já se tinha iniciado no Norte do continente. Foi lá, na Alemanha e na Escandinávia, desde o século XIX, que os contos se tornaram relevantes para a cultura erudita, e começaram a ser reunidos.

Um dos principais obreiros desse esforço, na nossa época, é o alemão Hans-Jorg Uther, que editou um catálogo de todos os contos populares europeus, ou melhor, dos seus "tipos", ou, melhor ainda, dos contos que surgem, sob diferentes versões, nos vários países e regiões da Europa. São 2800 tipos de contos, que tinham começado a ser reunidos em 1910, em alemão, e depois em 1961, em inglês.

Acontece que, desde há cinco anos, alguns dos especialistas da Europa do Sul consideraram que aos catálogos elaborados no Norte faltava uma dimensão específica da cultura popular da Europa do Sul. Isto explicam eles. Os especialistas do Norte acham que o problema foi o inglês ter-se tornado na língua dominante dos encontros internacionais. A verdade é que os sulistas se reuniram em Toulouse uma primeira vez, e depois mais quatro vezes, incluindo esta, em Ponte de Sor, de terça-feira, 8 de Junho, a sábado, 12.

Trata-se do Grupo de Reflexão Europeu sobre Narrativa Oral (GRENO), em cujas reuniões não se fala inglês. Mas Hans está presente todos os anos. "Convidamos sempre o "inimigo"", diz Isabel. E ele vai, porque ainda está a concluir o seu catálogo, "que só estará pronto em 2015 e inclui todos os tipos de contos da Europa", explica ele. Contos que "existem em pelo menos três países, sob pena de serem excluídos da edição seguinte do catálogo".

No salão do marquês, os peritos estão agora todos a contar lendas que descobriram em vários lugares. Umas incluem bruxas, que surgem em encruzilhadas, outras o diabo, a quem é chamado todos os nomes menos esse ("o das unhas grandes", o "calças", o "cabeludo"), outras, em território português, têm mouras encantadas e a Virgem, personagens que não surgem noutros lugares, onde são substituídos por figuras locais, representando embora papéis semelhantes, em histórias que são basicamente as mesmas.

É esse um dos temas em discussão nesta fase do encontro: como viajam as lendas de um lugar para o outro? O facto é que "a mesma história pode surgir em Portugal e na China", diz Isabel Cardigos. E está demonstrado que não é por geração espontânea: as lendas viajam. "Principalmente devido aos peregrinos."

A "menina do Kadoc"

Durante a semana que durou o encontro, os cerca de 30 especialistas de vários países falaram sobre lendas não apenas nas sessões propriamente ditas, mas também às refeições, nos passeios pelos jardins e ao serão, no palácio de D. Fernando, onde todos ficaram hospedados, por convite da Fundação das Casas de Fronteira e Alorna. O ambiente é propício e as discussões são por vezes intermináveis e indisciplinadas, para desespero do anfitrião e moderador.

Alexandre Parafita, que pertence também à equipa do Arquivo e Catálogo do Corpus Lendário Português, falou das lendas do vale do Douro e suscitou controvérsia com as suas distinções entre lenda, conto e mito. Nos seus exemplos, mostrou imagens de monumentos antigos ou formações geológicas que deram origem a lendas, como forma popular de os explicar. Certas rochas situadas no topo de montes, por exemplo, suscitaram lendas diversas, correspondentes às diferentes perspectivas visuais que delas têm as várias aldeias.

Mas o tema que mais apaixonou os especialistas no último dia de trabalhos foi o das lendas urbanas. O único especialista português na matéria, porém, é relutante em classificá-las desse modo. José Joaquim Dias Marques, da Universidade do Algarve, referiu-se a algumas dessas "lendas urbanas". A do tráfico de órgãos, por exemplo, ou a dos chineses que não morrem, ou ainda a da "menina do Kadoc".

Dias Marques submeteu cada uma destas histórias que correm e em que as pessoas acreditam, hoje em dia, aos critérios de análise e classificação habituais, para concluir que elas não são "lendas urbanas", mas apenas lendas.

A da "menina do Kadoc", que circula no Algarve, conta que uma rapariga foi uma vez à discoteca Kadoc, na zona de Loulé, e, à saída, pediu boleia a dois rapazes, para ir para casa. Mas durante o caminho foi violada e morta. Depois disso, uma rapariga surge certas noites a pedir boleia à porta do Kadoc. Dão-lhe boleia, mas, num determinado local, ela diz: "Foi aqui que eu morri." E quando, nesse momento, o condutor olha para ela, não vê ninguém. A rapariga desapareceu.

Ora o investigador encontrou versões desta história noutros locais. A mais antiga foi numa revista da Califórnia onde, em 1942, se conta a lenda do "Vanishing Hitchiker". Mas ela existe muito antes, no século XV, quando não havia automóveis para dar boleias. Um rapaz foi a um baile e dançou com uma bela rapariga toda a noite. No fim levou-a a casa, mas no dia seguinte, quando a procurou, disseram-lhe que ela morrera anos antes.

É a mesma lenda, e não tem nada de urbana. Evoluiu, adaptou-se aos tempos e continuam a acreditar nela. Continua verdadeira e viva, o que, agora sabemos, só prova uma coisa - não é um conto, é uma lenda.

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