"Se contasse, deixaria de ser segredo"

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André Conti

Nas noites da Festa Literária de Paraty, Salman Rushdie dançou com o filho Milan, para quem escreveu o livro que está agora a promover. Os tempos da fatwa parecem ter ficado para trás

Quem viu Salman Rushdie e o filho Milan a dançar samba na festa dada pela sua editora brasileira, a Companhia das Letras, em Paraty, no Brasil, jamais o esquecerá. 

Milan tem 11 anos e esteve com o pai na famosa Festa Literária Internacional de Paraty (FLIP), onde o escritor está a lançar mundialmente o seu novo livro, Luka e o Fogo da Vida. Se não fosse Milan, cujo segundo nome é Luka, este romance infanto-juvenil que chega a Portugal em Novembro (Dom Quixote), ao mesmo tempo que nos Estados Unidos, não existiria. Por isso, na noite em que Rushdie subiu ao palco da Tenda dos Autores para falar sobre si e sobre esta obra, chamou o filho para ir até junto dele e apresentou-o ao público, que deixava a sala a abarrotar.

O livro de Rushdie conta a história de um rapaz canhoto a quem parece muitas vezes que é o resto do mundo que funciona ao contrário, e não ele. Luka tem de salvar o pai e pela sua aventura passam ainda um urso e um cão que falam e um tapete voador. Salman Rushdie contou na FLIP que sempre quis pôr dentro de um livro um tapete voador. "Foi um grande feito finalmente tê-lo conseguido. O meu filho Milan, para quem escrevi este livro, está a ler um livro fantástico de Gabriel García Márquez, Cem Anos de Solidão, onde também existe um tapete voador."

Nos anos 90, Salman Rushdie escreveu um livro para o seu filho mais velho - Harun e o Mar de Histórias (foi escrito quando era perseguido) -, e quando Milan o leu perguntou ao pai: "Onde está o meu livro?"

"E havia duas respostas para esta pergunta", disse o autor, sexta-feira, ao fim da tarde, em Paraty. "Uma era dizer-lhe que a vida é injusta, que é a resposta verdadeira, mas não é a resposta boa. A outra era escrever um livro para ele." Luka e o Fogo da Vida é a resposta à pergunta de Milan. 

Depois de ter escrito Harun e o Mar de Histórias, Rushdie percebeu que os livros infanto-juvenis que ele adorava também tinham sido escritos para crianças específicas. E deu o exemplo de Alice, de Lewis Carroll, e de Peter Pan, de J. M. Barrie. Livros que se tornaram clássicos universais e que foram inicialmente escritos para uma criança em particular. 

Sempre com humor

O Salman Rushdie que andou estes dias por Paraty, onde está pela segunda vez, a passear de barco e a conversar com os colegas - como a escritora iraniana Azar Nafisi (Ler Lolita em Teerão), que também está a participar na Festa e a inteirar-se da situação de Sakineh Ashtiani, condenada à morte por apedrejamento sob a acusação de adultério - é um homem que parece descontraído, com sentido de humor apurado e inteligência brilhante. "Não tenho interesse nenhum em pessoas que têm respostas. Prefiro aquelas que têm perguntas. E quando as pessoas acham que sabem as respostas todas eu desligo", disse o homem que, entre 1989 e 1998, viveu escondido por causa de uma fatwa decretada pelo ayatollah Khomeini (1900-1989), que ofereceu uma recompensa pela sua morte depois de Rushdie ter escrito Os Versículos Satânicos. 

Não sabemos se pelas ruas empedradas de Paraty, Salman Rushdie andou a evitar dar de caras com o crítico e professor universitário Terry Eagleton, que o acusou de apoiar a política neoconservadora da "guerra ao terrorismo" dos governos britânico e norte-americano. Mas na sessão moderada pelo jornalista Silio Boccanera, aludiu à polémica entre os dois: "Ele anda por aí? Vou dizer-lhe que não tem coragem de me enfrentar com a sua mentira." E lembrou que durante anos foi presidente do PEN americano, onde se opôs "às aventuras de [George W.] Bush e [Dick] Cheney", considerando "ofensivo, desonesto e desonroso" ser acusado pelo "senhor Eagleton" de fazer parte da agenda neoconservadora do ex-Presidente norte-americano e do seu vice. 

Várias vezes as respostas bem humoradas de Rushdie fizeram com que o público desatasse às gargalhadas. Mesmo quando se falava de perseguição e morte. O jornalista brasileiro perguntou-lhe se os tempos em que viveu escondido da civilização e protegido, que foram certamente desagradáveis, tinham feito com que ele mudasse e se havia coisas boas nesse período. "Essa é uma pergunta estranha porque, se eu responder que sim, vai parecer que estou a recomendar sentenças de morte às pessoas", disse. "Aliás, se puderem, evitem sempre sentenças de morte por fanáticos...", brincou, acrescentando que nunca gostou da palavra esconderijo porque quem sabe o que é a segurança máxima sabe que é o oposto de estar invisível: "É muito, muito visível, porque estamos constantemente rodeados de guardas, como se estivéssemos a dizer que o alvo está ali." 

Um escritor lento

Agora, que já passaram duas décadas desde o começo da fatwa, Rushdie está a escrever sobre o assunto. "É um livro de não-ficção, porque o que é interessante no que aconteceu é que realmente aconteceu. Se se inventasse isto para colocar numa obra de ficção, as pessoas iriam dizer que se tratava de um mau romance. É verdadeiro e, por isso, é preciso contá-lo como uma história de não-ficção."

Rushdie admitiu ainda que, apesar de ter adiado o momento, sempre soube que mais cedo ou mais tarde iria escrever sobre aquilo que passou. E há quatro, cinco meses chegou a esse ponto em que disse às pessoas que iria contar aquela história. E começou a pesquisar, a ler os diários que escreveu na época, a ler o que outros escreveram, a reunir informação, e começou a escrever. Já tem 60 a 70 páginas. "Eu sou lento, não sou um escritor muito rápido. Pergunte-me outra vez sobre este livro daqui a dois anos", disse o autor de 63 anos, que hoje vive em Nova Iorque. Rushdie gosta das mulheres nova-iorquinas, das ruas e dos sons. "Sou uma pessoa que gosta de viver em cidades grandes. A minha opinião sobre o campo é que é um lugar para as vacas." Risos. 

Lá para o fim da conversa, Silio Boccanera quis que o autor de Os Filhos da Meia-Noite falasse sobre o futuro do livro, um dos temas desta FLIP. Rushdie fez-lhe a vontade, dizendo que o filho tem um iPad que ele inveja: "Acho interessante que Milan me diga que fica enjoado a ler um livro impresso numa viagem de carro ou de comboio, mas consegue fazê-lo sem enjoos num iPad." E depois acrescentou que todos os editores estão em pânico com o digital - "estão sempre assustadíssimos" -, lembrando que o livro impresso é uma tecnologia muito sofisticada, que se pode deixar cair sem perder os dados e que não bloqueia quando se está a ler. "Uma vez deixei cair uma garrafa de Coca-Cola no meu Apple e ficou sem conserto. Tive que o deitar fora e comprar outro. Se a mesma garrafa de Coca-Cola caísse em cima de um livro de papel, as informações essenciais continuariam ali, talvez com as páginas um pouco amachucadas, nada de mais." 

No final, alguém do público atirou uma pergunta: "Você é um péssimo dançarino e não é muito bonito. Qual é o segredo para andar sempre com mulheres bonitas?" E Salman Rushdie claro que respondeu: "Se lhe contasse, deixaria de ser segredo..."
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