Memorabilia ultramarina

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Vítor Ferreira

Resgate de um passado sem futuro, esta literatura não se desembaraça do eterno retorno de si mesma

O que define um retornado? Existe uma literatura de retornados? Os franceses chamam "pied-noir" aos franceses naturais da Argélia, categoria que inclui Althusser, Camus, Derrida e outros. Nós inventamos o termo "retornado" para designar os colonos de Angola e Moçambique. Dos retornados da Guiné ou São Tomé ninguém se lembra. Cabo Verde não encaixa nestes parâmetros.

Realidades diferentes, de facto.

Em Angola, a luta entre os movimentos independentistas (MPLA, UNITA, FNLA) teve expressão urbana na Batalha de Luanda, que a 9 de Julho de 1975 mergulhou a cidade num banho de sangue. Como refere Tiago Rebelo, "Na população branca dissolveu-se de vez a ilusão de que seria possível ter um lugar no futuro de Angola." (cf. "O Último Ano em Luanda", Presença, 2008) Em consequência, o governo português organizou uma ponte aérea de proporções homéricas: durante 140 dias, entre 17 de Julho e 3 de Dezembro de 1975 (a independência de Angola, a 11 de Novembro, não estancou o êxodo), centenas de aviões evacuaram para Portugal meio milhão de refugiados. A sociedade portuguesa não voltaria a ser a mesma.

A ponte aérea é o tema do livro de Júlio Magalhães, "Os Retornados. Um amor nunca se esquece" (Esfera dos Livros, 2008), inspirado no caso verídico de uma hospedeira da TAP que fez onze voos em duas semanas. Como metáfora, é impressiva a imagem de um país a ser escoado de avião.

Em Moçambique, a tentativa de secessão branca de 7 de Setembro de 1974, gorada ao fim de quatro dias, provocara a fuga de milhares de secessionistas para a África do Sul e a Rodésia. Quase nenhuns os que vieram para Portugal, onde a política do MFA era objecto da sua ira.

Testemunha próxima dos acontecimentos, Ricardo de Saavedra escalpeliza o golpe e respectivas sequelas em duas obras: "Aqui Moçambique Livre" (Livraria Moderna, 1975; o título apropria-se do nome do movimento rebelde) e o romance "Os Dias do Fim" (1995; edição revista em 2008, Casa das Letras). Isto para dizer que, ao contrário de Angola, a saída dos portugueses de Moçambique fez-se à revelia das autoridades portuguesas, por iniciativa e risco dos interessados.

O mundo desaparecido

Feito o intróito, vejamos de que modo esta literatura do eterno retorno fixou o destino das populações deslocadas.

Ao "boom" da literatura da guerra colonial, tema a que o Ípsilon dedicou dossier (4-4-2008), seguiu-se a publicação de livros que fazem o inventário dos dias de vinho e rosas vividos nas "províncias ultramarinas", com enfoque em Angola. Sem a pretensão de ser exaustivo, destacaria, além dos citados, os livros de António Trabulo, "Retornados - O Adeus a África" (Cristo Negro, 2009), e Manuel Acácio, "A Balada do Ultramar" (Oficina do Livro, 2009). Denominador comum, vénia a um mundo desaparecido.

Vista do Índico, a borrasca imperial tem outros matizes. As suas balizas são eloquentes: "A Sombra dos Dias" (Bertrand, 1981), romance autobiográfico de Guilherme de Melo, sobre 50 anos da vida de uma família em Moçambique; e o corrosivo "Caderno de Memórias Coloniais" (Angelus Novus, 2009), de Isabela Figueiredo. Quando "A Sombra dos Dias" chegou às livrarias, a opinião pública não estava, como está hoje, receptiva a memórias coloniais. A crítica de referência ignorou o livro, o que não impediu fortuna de público, traduzida em sucessivas reedições.

A partir da sua experiência pessoal (círculo familiar, homossexualidade, carreira jornalística, inflexão ideológica, ligações amorosas) Guilherme de Melo faz um "tour d'horizon" ao modo de vida moçambicano e à sociedade laurentina em particular. A nostalgia é temperada pela consciência dos factos, sem cedências de natureza "passadista". O que não é de admirar, se nos lembrarmos do primeiro romance do autor, "As Raízes do "dio" (Arcádia, 1965), que circulou em Portugal mas foi retirado do mercado em Moçambique, onde a guerra de libertação tinha começado menos de um ano antes.

Ao contrário, Isabela Figueiredo faz o relato de uma menina de 12 anos acossada pela memória dos massacres de Setembro de 1974: "a negralhada perdeu o freio [...] chacinou, cega, tudo o que era branco". Também se lembra de ter visto os restos de um vizinho (desmembrado à catanada) espalhados no milheiral. Sobre a sociedade local, de que guarda recordações de infância, o discurso, mordaz, constrói um "patchwork" do que terá ouvido ou intuído em casa: "Os brancos iam às pretas. [...] As pretas tinham a cona larga e essa era a explicação para parirem como pariam, de borco, todas viradas para o chão, onde quer que fosse, como os animais. A cona era larga. A das brancas não, era estreita, porque as brancas não eram umas cadelas fáceis, porque à cona sagrada das brancas só lá tinha chegado o do marido, e pouco, e com dificuldade, que elas eram muito estreitas, portanto muito sérias, e convinha que umas soubessem isto das outras." Pela primeira vez, alguém questiona o mito da "multirracialidade". Os retornados não gostaram, fazendo de Isabela um alvo a abater.

A falência do modelo de independência com que muitos colonos sonharam para Angola foi o detonador da literatura jubilatória que associamos à "saga" dos retornados. Isso é nítido nos livros de António Trabulo e Manuel Acácio. De certo modo também o é nos de Ricardo de Saavedra, mas o tom difere: lá onde Trabulo e Acácio tecem loas ao "paraíso perdido", Saavedra regista com secura o atropelo dos dias: "Há pouco mais de uma hora saiu a primeira edição daquele que deve ser caso único na história da imprensa em língua portuguesa. Para explicar um jornal do povo, este 'Diário' será paradigma. Redigido por profissionais que nunca trabalharam juntos, composto por linotipistas que só de vista se conheciam, montado e impresso por quem apareceu [...] sem artigos assinados ou nome de director, está agora a ser distribuído por populares que o anunciam como o jornal da liberdade."

O traço distintivo destas obras é o de estabelecerem um contraponto entre a sociedade portuguesa, moldada pela política do Estado Novo, e o modo de vida de Angola e Moçambique, menos opressivo que na "Metrópole". Não cabe aqui desenvolver o tema da colonização dos territórios de África sob administração portuguesa, nem é essa a preocupação dos autores visados. No seu conjunto, são obras de fim de ciclo. Indiferentes ao juízo da História, os autores lamentam a perda de um mundo julgado imutável.

Vastos territórios, Angola e Moçambique designaram-se, sucessivamente, por Colónias (até 1951), Províncias Ultramarinas (1951-72) e Estados (1972-75; por força da revisão marcelista da Constituição que mudou a Lei Orgânica do Ultramar). O desenvolvimento económico (em Angola) e um cosmopolitismo pautado por costumes "anglo-saxónicos" (em Moçambique, país que faz fronteira com seis países de língua inglesa), deram origem a sociedades abertas. Forçados ao cinzentismo do Portugal dos anos 1970, os autores da "memorabilia" ultramarina tentam resgatar o brilho de um passado sem futuro. Isabela Figueiredo não poupa nos adjectivos: "A metrópole era suja, feia, pálida, gelada. [...] Que triste gente! Divertiam-se a mofar connosco, atirando-nos à cara que estava difícil, pois estava, que aqui não havia pretinhos para nos lavarem os pés e o rabinho..."

Afinal, a maioria destes autores deixou África no início da adolescência. Isabela Figueiredo e Júlio Magalhães nasceram em 1963, Manuel Acácio e Tiago Rebelo em 1964. Sem perceberem porquê, todos viram fugir a possibilidade de outro destino. Dos quatro, só Isabela não culpa o devir histórico. (O seu ressentimento é de outra índole.) São diferentes os casos de Guilherme de Melo (n. 1931), Ricardo de Saavedra (n. 1941) e António Trabulo (n. 1943), homens feitos quando o Império enfim ruiu.
Num país onde "tudo demora muito tempo a mudar" (cf. "Caderno de Memórias Coloniais", 2009), o desencanto foi "de rigueur". Nem outra coisa seria de esperar. Na síntese certeira de Guilherme de Melo, tinha secado "o esplendor da relva."

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