As "Novas Cartas Portuguesas" regressam do desterro

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Escrito em 1972 por Maria Teresa Horta, Maria Velho da Costa e Maria Isabel Barreno, "Novas Cartas Portuguesas" é um livro maldito. Banido em Portugal, aclamado lá fora, e por fim esquecido, nunca se livrou do estigma de ser o grande texto feminista português do século XX. A reedição que a Dom Quixote agora publica, com anotações de Ana Luísa Amaral, trá-lo finalmente de volta ao seu lugar na história da literatura portuguesa. Quase 40 anos depois, continua a ser um livro contemporâneo, e há toda uma nova geração a redescobri-lo. Já não temos medo dele?

Há mais de uma década que Ana Luísa Amaral lecciona estudos feministas na Faculdade de Letras da Universidade do Porto usando como base as "Novas Cartas Portuguesas" (1972) de Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa, um livro que considera maior, tanto na história da literatura portuguesa e mundial do século XX como na história dos direitos humanos, e que tem sido posto de lado num país que até hoje não o leu. Ana Luísa Amaral dedicou-se a este texto e chefiou a equipa responsável pela sua reedição anotada pela Dom Quixote, que estará nas livrarias a partir de segunda-feira. Continua a ser urgente lê-lo, garante a professora em entrevista ao Ípsilon: há 38 anos foi histórico, agora é contemporâneo.

Qual é a modernidade política e sociológica desta obra?

As "Novas Cartas Portuguesas" (NCP) têm, para mim, uma imensa actualidade política e sociológica. Não só trata de questões relacionadas com os direitos das mulheres, mas com os direitos humanos em geral. Não podemos esquecer que não aparecem só textos sobre as mulheres e sobre a violência exercida sobre as mulheres, aparecem também, por exemplo, textos sobre a violência exercida sobre os jovens soldados na altura da Guerra Colonial, que podiam ser os soldados de agora, de uma guerra qualquer que esteja a ter lugar no nosso mundo. Do ponto de vista político, as NCP inscrevem-se num paradigma que vai muito além da sua época. Aquilo por que as NCP pugnam não é a questão da igualdade - porque o paradigma da igualdade é falacioso, penso eu. Igual em relação a quê? A um modelo. E qual é o modelo? É um modelo que nos interessa?

Elas questionam esse modelo.

Exactamente. As NCP questionam esse modelo e, ao questionarem esse modelo na sociedade, questionam também na política. Porque o fazer político sai do fazer social.

A modernidade do livro vem da forma como questiona as relações mulher-homem, mulher-mulher, homem-homem.

No fundo isto é um livro também sobre direitos humanos. É um libelo contra todas as formas de opressão. É um livro que põe em causa o próprio conceito - que vigora nos nossos dias e como, então agora através dos meios de comunicação - de amor romântico. A certa altura perguntam: o que puderam Romeu e Julieta? Esta pergunta é tremenda. É uma pergunta que fazia sentido em 1972, numa altura em que as mulheres não podiam votar, em que os direitos das mulheres eram praticamente nulos, e é um pergunta premente no século XXI em que, do ponto de vista jurídico, as mulheres estão protegidas e a questão da desigualdade e da discriminação parece estar minimamente resolvida e, apesar de tudo, [não está] nas práticas sociais, nas formas como as relações se estabelecem entre os seres humanos - obviamente enquadradas pelo discurso dominante e este é o discurso dos meios de comunicação, é o discurso político, é o discurso social que se faz a partir dali. Portanto, este é um momento em que a questão o que puderam Romeu e Julieta continua a fazer todo o sentido.

As autoras garantem que estavam a fazer um documento político, mas que a obra não foi feita como uma bíblia do feminismo. Apesar de Teresa Horta e Isabel Barreno serem feministas e terem mesmo lançado um movimento feminista, Maria Velho da Costa recusa essa classificação. As NCP continuam a ser um documento feminista?

Naturalmente que este texto continua hoje a poder ser lido - e foi lido na altura - como um documento importantíssimo para a história do feminismo em Portugal, se entendermos por feminismo a reivindicação de direitos das mulheres. Mas a grande riqueza do livro é que ele não tem de ser só lido como um documento de feminista, porque ele pulveriza categorias.

Pela forma como questiona o modelo social?

Exactamente. Ele pulveriza até as leituras que se podem fazer dele. O livro está muito além do seu tempo. Como as grandes obras normalmente estão. Entendo que este livro é uma grande obra, é um grande livro dentro da literatura portuguesa do século XX, dentro da história da literatura do século XX e dentro da história dos direitos humanos do século XX.

As NCP foram de uma enorme modernidade também ao nível dos conteúdos. Elas falam de masturbação da mulher, do corpo da mulher, da sexualidade da mulher, do prazer da mulher, da impotência dos homens, da incapacidade dos homens para satisfazerem as mulheres. Tudo coisas que, à época, ninguém se atrevia a pensar e que elas escrevem. Até que ponto este texto é só de subversão ou é também um texto transgressor?

O texto subverte, constrói uma versão sob outra versão, ao ir buscar à grande tradição da literatura a Mariana Alcoforado. Elas trabalham com esse mito cultural e são subversivas ao fazê-lo. E depois há dimensão profundamente transgressora, relativamente aos cânones do que era a mulher, relativamente aos estereótipos, aos temas que exploram. E essa dimensão transgressora, eu diria que ainda hoje, de alguma maneira, faz sentido. Disse e bem que é a assunção do corpo, do prazer da mulher, mas é também uma denúncia da fragilidade do humano. E julgo que a ênfase nunca é colocada em termos dicotómicos. Creio que é uma das riquezas do livro. Não são os homens - no caso das relações heterossexuais, que é o que livro sobretudo explora - os algozes e as mulheres as vítimas. É toda uma ordem social que é questionada. Há uma carta belíssima de um soldado para um amigo na então chamada metrópole, em que ele transita da ideia de transação da propriedade, que ele pede ao amigo que venda ao vizinho na aldeia, para a relação que tem com a namorada, cuja madrinha lhe está a ensinar coisas novas e ele sente que se está a escapar. Vemos muito bem a problemática da mulher como objecto transacionado, da transação da terra e de ele próprio soldado que é objecto de transação pelo sistema, neste caso um Governo que o envia para um país que ele não conhece.

O feminismo é isso, é questionar o modelo, não é colocar o homem numa bolha, como algoz.

Mas estávamos em 1972, o tipo de feminismo de que se falava - ou não se falava - então em Portugal não era um feminismo que promovesse a pulverização de categorias. Uma vez escrevi um ensaio sobre as NCP à luz da teoria "queer". E penso que isso é possível, a desmontagem continua até da ideia de identidade.

As NCP são inovadoras mesmo ao nível da própria escrita, do português, trazem um estilo novo.

Trazem. Ele é novo em todos os contextos. Até ao questionar a noção de autoria é novo.

Expliquemos: pela primeira vez há três mulheres, que são escritoras, que abdicam da sua identidade intelectual para escrever uma obra conjunta, sendo que cada uma escreve as suas cartas. Elas não assumem para o exterior quais são de qual, mas são textos individuais cujo conteúdo não era alterado, daí haver cartas em contradição e em diálogo. Até que ponto isto não é uma atitude revolucionária, esta comunhão, esta escrita colectiva, num país que vivia uma ditadura?

É.

Esta questão da autoria é inovação a nível mundial, à época, não é?

Tanto quanto sei, não tinha acontecido. E é muito interessante porque elas, ao desmontarem a noção de autoria, desmontam a noção de autoridade, questionam a autoridade social, a ditadura. Mas ao estenderem isso até agora, por mais 40 anos, no fundo é a própria autoridade social e a ideia de poder das nossas sociedades de hoje em dia, de controlo de tudo, que está também a ser posta em causa. Há um estudo feito, por exemplo, na Universidade de Aveiro que diz que as poesias são todas da Teresa Horta. Não são. Parece que até são poucas.

O que acontece é que elas exercitam a escrita umas das outras. Trabalham também com o conceito de alteridade, com a importância do outro. O outro que traz o seu texto. É quase uma cooperativa literária. É uma utopia, mas é uma utopia que tem resultados práticos. É como se provasse que a utopia é possível. E, depois, há a intertextualidade que percorre o livro. O livro do ponto de vista literário é riquíssimo, tem referências históricas, culturais, literárias de diversíssima ordem, umas mais, outras menos óbvias. Logo na primeira carta, quando se fala de Outubro e Maio, são os vários maios importantes na história portuguesa, europeia e mundial: o Primeiro de Maio, o Maio de 68, o mês de Maria, o Armistício. E há os diálogos intertextuais com outros escritores: Herberto Helder, Alexandre O'Neill, Eugénio de Andrade, a poesia trovadoresca, Bernardim Ribeiro. É toda a literatura portuguesa que é percorrida e não só, é Lévi-Strauss, por exemplo. A literatura e a história mundiais são aqui reactivadas, mas de uma forma nova.

As NCP nunca foram levadas a sério em Portugal, sobretudo na academia portuguesa. É o medo do feminismo? Ou é só ignorância?

É, em primeiro lugar, a ignorância, que se deve ao facto de isto ser identificado com o feminismo.

Mas o livro é claramente feminista!

Mas continua a achar-se que o feminismo é negativo. Portugal continua muito atrasado. Não quero muito explorar esta questão.

Tem medo também?

Eu não, que disparate. A questão é que quando o livro sai, em 1972, ele provoca ondas de choque e há imensos intelectuais que se lhes unem, mas tenho as minhas dúvidas sobre se o livro foi lido por muita gente que apoiou a causa em torno do livro. Porque o livro tornou-se numa espécie de símbolo contra a ditadura e incomodou mais do ponto de vista simbólico do que como objecto real. O que, por si só, não tem grande mal.

O problema é que depois ninguém leu.

O problema é que isso estende-se e vai contribuir para a sua estigmatização, porque cria-se esta ideia de que é um livro feminista. E é um livro feminista objectivamente. Vem o 25 de Abril, há todo a história do julgamento, que é extra-literária.

Leva mesmo à criação de um movimento feminista, o Movimento de Libertação das Mulheres.

No fundo, o livro é o rastilho do que é extra-literário e fica submerso por esta dimensão. E, em Portugal, nunca chega a ter o reconhecimento devido. Até hoje. Muita gente fala sem ter lido. E no estrangeiro isto não acontece. É ensinado numa série de universidades estrangeiras e que eu saiba, além de mim, mais ninguém em Portugal o ensina.

Como explica que as mulheres intelectuais em Portugal não se assumam como feministas, mesmo quando têm atitudes e pensamento feministas?

É algo que é muito antiquado, não tenho outra palavra. É continuar a ligar o feminismo àquilo que foi de facto uma franja do feminismo nos anos 60, ou seja, as feministas são aquelas que odeiam os homens e queimam soutiens. Esta ideia gravou-se e permanece na mente das pessoas e o feminismo, tal como os estudos feministas, é visto como algo menor. Eu já ouvi dizer, por exemplo, que não há razão nenhuma para haver estudos feministas, se não há estudos canadianos.

Isso é uma manifestação  de ignorância.

De uma profunda ignorância. Estamos a falar de uma grelha de leitura transversal aos estudos, americanos, ingleses, portugueses, etc. O feminismo está ligado à história, à literatura, à psicanálise, à filosofia, é uma área de saber completamente transversal. Acho que as pessoas ainda têm medo de serem associadas a essas ideia de feminismo como uma reivindicação de minorias histéricas.

Ser histérica é muito feminino, ao nível do estereótipo.

Esquecem-se que a histeria é humana.

A Ana Luísa não tem medo de dizer que é feminista?

Eu? Não!

E tem alguma coisa contra queimarem-se soutiens?

Foi um momento histórico nos Estados Unidos. Cá ninguém queimou. Claro que não vem mal ao mundo. Esse gesto deve ser visto como desafio aos poderes instalados, como um momento de ruptura.

Com Raquel Ribeiro

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