O poder e a glória

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Daniel Rocha

Nos seus livros, os seres procuram uma relação tangível com o inefável num tempo desolado em que a descrença se afirma. "Pergunto-me se estaremos no melhor dos caminhos com esta 'dieta' espartana nas artes que proíbe o Belo, o heróico e o ideal", diz-nos Michael Cunningham, autor de "Ao Cair da Noite"

Ganhou um Pulitzer e um Pen/Faulkner com "As Horas", romance intenso e dorido sobre a idade, a doença (Sida), a homossexualidade, a depressão e a loucura, focado nas personalidades de três mulheres cujas vidas se cruzam num espaço literário proporcionado pela obra "Senhora Dalloway". A adaptação cinematográfica de Stephen Daldry provocou a ira dos admiradores de Virginia Woolf - interpretada por Nikole Kidman com um nariz postiço - mas esse facto não deteve a confirmação da excelência da escrita de Michael Cunningham, o autor americano (Ohio, 1952) de seis romances, adaptações para o cinema e teatro e especialista em Literatura moderna e contemporânea.

Cunningham tem afirmado que é obrigado a contentar-se com a escrita embora seja apreciador de arte, característica bem visível no seu último romance, "Ao Cair da Noite", que gira em torno de Peter Harris, dono de uma galeria e "dealer", fatalmente invadido por uma crise de meia idade enquanto os mercados tremem e a sua vida pessoal, e a relação com Rebecca, é abalada pela chegada de Mizzy, um jovem escultural e transviado que põe em causa a sua vida conjugal.

A citação de Rainer Maria Rilke no início de "Ao Cair da Noite" - "A beleza não é mais do que o início do terror" - convém perfeitamente a esta história assombrada, em que seres comuns procuram uma relação tangível com o inefável num tempo desolado em que a solidão, a ansiedade e a descrença constantemente se afirmam no trepidante universo urbano.

Michael Cunningham já está a escrever novo romance e a trabalhar, simultaneamente, numa adaptação cinematográfica do conto de Henry James "A Volta do Parafuso".

No início de "Ao Cair da Noite" existe logo uma clara e directa homenagem a "Senhora Dalloway". Virginia Woolf continua no centro do seu cânone?

Na realidade, começo com uma referência a "Ulisses" de James Joyce ["um Buck Mulligan imponente e anafado"] mas Woolf é, sem dúvida, uma das deusas do meu panteão literário, embora esse templo esteja povoado de génios como Fitzgerald e Thomas Mann. Para além de ser um fanático de Woolf sou um fanático de livros, em geral.

Não esconde os fortes laços que o unem aos grandes autores europeus a aos americanos que se europeizaram, como Henry James e George Eliot. Esta ligação tem a ver com a forma como estes escritores trataram os conceitos de tempo e de espaço, com as personagens que eles criaram, ou porque sente uma melancolia em relação ao Velho Mundo?

Não sinto qualquer melancolia em relação à Europa. Prefiro Nova Iorque, apesar do perigo e do medo que são constantes nesta cidade. Mas, na minha qualidade de escritor contemporâneo, sei que Henry James, T.S. Eliot e os seus "companheiros" são meus antecessores e é evidente que construo [o meu trabalho] sobre o que eles me legaram, mais ou menos como um pintor agora não pode ignorar Picasso ou [Jackson] Pollock.

Nos seus romances reinventa a "corrente da consciência". É uma técnica que serve o propósito de uma escrita "cinematográfica", como a sua?

A interiorização - isto é, a capacidade de penetrar na mente e no coração das personagens - é uma das forças mais poderosas e singulares da ficção do século XX. É algo que se pode fazer num romance e não no cinema. As formas de arte evoluem não só a partir de dentro si próprias mas também como resposta a outras formas artísticas. Se um trabalho de ficção se mantém resolutamente na superfície das suas personagens, mais facilmente poderia ser um filme.

A sua visão de Nova Iorque é muito cinematográfica, uma vez que faz vários "zooms" sobre as ruas, as casas, os objectos, as peças nos museus, a luz, a composição do ar. Afirma que Nova Iorque é uma cidade "medieval", um lugar onde vários estratos se acumulam...

Nova Iorque é "medieval" no sentido em que é tão populosa que vivemos todos ombro a ombro, entre multidões. A maior parte das cidades modernas não é assim: podemos passear em Paris e Berlim e ver só pessoas mais ou menos como nós próprios. Em Nova Iorque os leprosos cambaleiam pelas ruas ao lado dos ricos e dos aristocratas e podemos estar parados num semáforo, à espera de atravessar, com Susan Sarandon de um lado e um mendigo sem uma perna do outro. Em Nova Iorque a nossa atenção está sempre a ser desperta para o facto de, quem quer que sejamos ou de onde vimos, não pertencermos a nenhuma categoria específica e de que a raça humana é mais vasta e variada do que alguma vez ousámos imaginar.

Nova Iorque é, também, uma espécie de Babilónia. Será que, para si, funciona como uma metáfora de dissolução e perda?

Ah, Nova Iorque pode servir de metáfora para tanta coisa! Mas reconheço que pode ser vista como uma nova Babilónia, no sentido em que, nela, tudo é permitido. É maravilhosamente depravada, um lugar onde, se olharmos em volta, podemos detectar todo o tipo de vícios que aí florescem. Uma pessoa mais puritana certamente se sentirá incomodada. Eu adoro-a.

Existem sempre, nas suas personagens, sentimentos de indefinição, de confusão, de perda, em relação ao amor, ao sexo, ao género. Será um sinal do "espírito do tempo"?

Suponho que sim mas este "espírito do tempo" já está connosco há muito. Creio que o sentimento de desorientação aflige-nos desde a altura da Revolução Industrial, quando deixámos de viver em quintas e nos instalámos nas cidades, perdendo o contacto com o ritmo das estações que ditavam as nossas necessidades. Uma vez que fazemos parte de um mecanismo global no qual somos apenas um componente ínfimo, quem é que não se sente um pouco perdido?

Edith Wharton, Scott Fitzgerald e o nosso contemporâneo Jay McInerney são testemunhas de um universo onde os colapsos se sucedem. "Ao Cair da Noite" é, também, uma chamada de atenção para os múltiplos "ocasos" na recente história da América?

Absolutamente. A América não atravessa, neste momento, um período particularmente "brilhante" apesar de possuir, ainda, um poder tremendo. A economia está de rastos, não conseguimos construir prisões a um ritmo suficientemente rápido para albergar todos os criminosos e o nosso sistema de ensino é um dos piores do mundo ocidental. Sim, olhando para a América de 2010, não há dúvida que o termo "ocaso" me ocorre imediatamente.

Em "Ao Cair da Noite" faz uma reflexão sobre o papel da arte numa sociedade próspera e como este mesmo papel se altera em momentos de crise...

A arte na América (e não só) resume-se quase só ao dinheiro. Os ricos que nada sabem de arte compram peças rotineiramente, como investimento, como se estivessem a adquirir casas ou qualquer outra coisa. Se a arte se torna parte integrante da economia, as flutuações acompanham o estado dessa mesma economia. Não é, certamente, um bom desenvolvimento no que diz respeito à História de Arte.

Neste mesmo romance - na cena passada no Museu Metropolitan - coloca as personagens a falar da morte do heróico e da sua substituição pelo "real". Será esse um dos traços mais fortes da nossa sociedade pós 11 de Setembro?

Em arte, o heróico e o ideal foram eliminados muito antes da tragédia do 11 de Setembro. A pintura, por exemplo, há décadas que se tornou decididamente irónica, desenraizada e não-bela. Tal como a minha personagem Peter Harris pergunto-me se estaremos no melhor dos caminhos com esta espécie de "dieta" espartana nas artes que proíbe o Belo, o heróico e o ideal.

É por essa razão que cria constantemente, na narrativa, uma tensão entre o banal e o excepcional, entre o romântico e o pragmático, entre a beleza e o rigor?

Creio que os romances contemporâneos, se querem ter algum interesse, precisam de incluir essa tensão. No nosso quotidiano as notícias matutinas alternam entre tragédias em qualquer ponto do mundo e histórias de gatinhos a serem salvos de poços, o que nos coloca, sempre, numa posição de atenção e preocupação em relação a qualquer deste tipo de situações. A literatura tem que ser capaz de reflectir este clima de uma forma tão realista quanto possível.

Também enfatiza a importância da representação e da aparência. Quando Peter refere a artista Victoria Hwang diz que o seu trabalho vai ganhar visibilidade por causa de um artigo numa revista da especialidade. Trata-se da representação da representação e por aí fora... Não haverá o perigo de nos perdermos neste universo?

Não esqueçamos que toda a arte é sobre representação e não é a vida, mas sim uma transposição daquilo que o artista retém. No caso de Victoria Hwang propus-me realçar o facto de certas representações serem levadas mais a sério do que outras. O mercado da arte é muito controlado o que implica que apenas seja concedida e garantida autoridade a um punhado de artistas. Aquele que é verdadeiramente bem sucedido é tratado como uma estrela de cinema, indo ocupar um lugar que bem poderia ser para outros tão talentosos como ele (ou ela) mas que não conseguiram uma exposição tão eficaz. 

A visita de Peter Harris ao atelier do artista Rupert Groff representa um ponto de viragem no romance. Foi sua intenção expor a velha confrontação "nietzscheana" entre o aspecto "dionisíaco" e o "apolíneo" ?

Sim, é uma questão que me preocupa. Interessa-me o facto de um belo objecto não ter poder para animar ou consolar. Podem chamar-me antiquado mas continuo a considerar que uma das finalidades da arte é, não só desafiar-nos, mas ajudar-nos a recordar que a vida merece ser vivida.

Neste romance as referências à Arte e a artistas são inúmeras. No entanto, três delas são basilares: a escultura de Rodin representa o ideal de Beleza, o "Tubarão" de Damien Hirst representa o medo e a incerteza e a "urna" de Groff representa a morte? Concorda com esta visão e com o facto de serem metáforas para, respectivamente, o passado, o presente e o futuro?

Absolutamente. 

No que diz respeito a personagens, será que Rebecca e Mizzy são duas representações do mesmo ideal do equilíbrio clássico, sendo que a primeira funciona a um nível mental e o segundo físico?

Concordo totalmente. Mizzy é como uma reincarnação da jovem Rebecca e Peter é atraído por ele, em parte porque representa a sua juventude perdida, quando ele estava apaixonado por uma mulher jovem e cheio de esperança em relação ao futuro. Rebecca mudou com a idade, como toda a gente. Mizzy ainda é novo, fresco, cheio de ambições e desperta, em Peter, o desejo de uma segunda oportunidade de juventude.

A atracção entre Peter e Mizzy é o reflexo, para si, de uma celebração do companheirismo masculino como o que surge no "Fedro" de Platão ou representa mais o ideal socrático do homem mais velho que ama um mais novo? Será este o conflito que passa pela cabeça de Peter?

Na realidade representa ambos esses aspectos. O que Peter sente por Mizzy (e o que ele, erradamente, pensa que Mizzy sente por ele) é uma amizade intensamente romântica com laivos de erotismo mas que não é essencialmente sexual. Creio que este tipo de sentimento é comum a Sócrates e a Platão. O que Peter realmente deseja é que Mizzy o empurre para uma rotura, levando-o a cometer actos impensáveis, num momento de grande insatisfação e desinteresse, na sua vida.

Parece querer expor uma certa tristeza em relação ao fim de um tipo de civilização representado aqui pela "urna clássica", de uma beleza imaculada, que mostra o seu lado violento e negro, quando vista de perto. É uma visão pessimista?

Na realidade sou bastante optimista mas só confio num tipo de optimismo, aquele que resiste às piores situações. O amor pode destruir-nos e desapontar-nos, a arte pode falhar como forma de consolação mas "Ao Cair da Noite", como outros dos meus romances, acaba com o que se poderá chamar de "tentativa de felicidade". Consideram-me um pessimista porque faço passar as minhas personagens por maus momentos; no entanto, por muito duras que sejam as suas atribulações, elas resistem e continuam a viver. Sou um escritor sombrio mas não tenho qualquer apreço pela dor.

"Ao Cair da Noite" é um romance sobre a morte? Morte física, civilizacional, emocional?

É um romance sobre a mortalidade, o que é diferente. No Tarot, a carta da morte não é necessariamente sombria e tenebrosa mas sim o sinal do fim de um ciclo da existência que vai dar lugar a outro. É sobre isto que escrevo, sobre o fim de algo e o início de outra coisa, por vezes completamente diferente.

É um dos "mestres" na descrição de triângulos amorosos e eróticos, muitos deles com um lado homossexual - como em "As Horas", "Uma Casa no Fim do Mundo" e "Ao Cair da Noite". Este é um dos padrões mais pertinentes no que diz respeito às relações humanas?

Existem tantos padrões nas relações humanas quanto pessoas. Creio que "três" é um número particularmente interessante: "um" é simplesmente um; "dois" é sempre simétrico por mais voltas que se lhe dê; o "três" é realmente o primeiro número excitante. Três personagens podem ser colocadas simetricamente mas podem também ocupar uma infinidade de outras posições. Torna-se muito mais atraente, em termos de dramatismo.

Nos seus livros existem sempre múltiplas referências, muitas delas eruditas. Não tem receio de ser lido apenas por um número restrito de pessoas?

Escrevo para um leitor ideal que seja mais esperto do que eu. Quando digo "esperto" não me refiro a alguém que é extremamente versado em arte e literatura, mas sim quem seja capaz de seguir a história e experimentar as emoções que ela convoca sem a necessidade de saber quem é Carl André, o neo-Expressionismo ou a obra mais tardia de Henry James. Fico muito feliz quando os leitores possuem essa sabedoria, mas tento contar histórias que funcionem independentemente de qualquer tipo de conhecimento mais sofisticado.

Porque é que, nos seus romances, as personagens mais promissoras acabam por morrer ou ter vidas desinteressantes?

Sempre me atraíram as qualidades épicas das vidas de pessoas banais. Prefiro falar do bobo da corte do que do rei...

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