Se aqui não está o povo, onde é que está o povo?

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JOSÉ ANTUNES

Uma revolução é um processo complexo. E em 1974 e 1975 havia, como nunca, projectos políticos alternativos em confronto. Continuação do debate iniciado há uma semana a propósito de História do Povo na Revolução Portuguesa, 1974-75

No suplemento Ípsilon do passado dia 11 de Abril, com o título Onde está o Povo?, foi publicada uma crítica de António Araújo ao meu livro História do Povo na Revolução Portuguesa, 1974-75. Agradeço a leitura e creio que o debate pode ser muito interessante.

A crítica central de António Araújo é que a minha tese “resvala num maniqueísmo que, opondo elites e povo, acaba por fornecer uma visão simplista de um processo complexo”. E contrapõe à participação popular na revolução que trato de historiar, com o povo nas ruas, decidindo directamente a sua vida nas comissões de trabalhadores, de moradores, de soldados, em assembleias populares, “as longas filas de votantes no sufrágio para a Constituinte, naquelas que foram as eleições mais participadas da história do regime democrático”. Ora isto ecoa uma batalha central da revolução portuguesa, em que manifestações rivais disputaram as ruas gritando uns “Se isto não é o povo, onde é que está o povo?” e os outros respondendo “O povo somos nós”.

Porque o povo votou em massa nas eleições para a Constituinte, tal como votava nas fábricas e empresas por um caderno reivindicativo, como votava em assembleias de todos os tipos, muitas vezes contra o que tinha sido aprovado pelos Governos, aliás não eleitos. A começar por coisas tão centrais como a lei restritiva do direito de greve, de Agosto de 1974, que nunca foi cumprida, como não foram acatados os repetidos apelos para que gente sem casa não ocupasse casas, tivesse “calma”, ou “contenção nas reivindicações salariais”.

A palavra mais usada nas eleições de 1975 foi democracia — de acordo com um estudo publicado. Mas, para uns, democracia significava controlo operário; para outros, co-gestão entre sindicatos e Estado em empresas com intervenção estatal; para outros, a não expropriação da banca… Uma revolução é um processo complexo. Em 1974 e 1975 havia, como nunca, projectos políticos alternativos em confronto.

António Araújo ecoa a tese liberal de que “a democracia representativa, baseada na escolha de deputados através de eleições livres, não surgiu no 25 de Novembro (…). O seu triunfo mais decisivo ocorrera meses antes, em Abril, nas eleições para a Constituinte”. Esta tese não tem verificação empírica. A democracia começou no dia 25 de Abril de 1974 e não no dia 25 de Abril de 1975. Começou com horas infinitas de reuniões onde as pessoas comuns se inteiravam das questões de trabalho, produção, habitação e gestão e votavam de braço no ar, em comissões, com representantes, revogáveis a qualquer momento caso desrespeitassem os resultados dos plenários massivamente participados. Nunca tanta gente decidiu tanto na História de Portugal como em 1974 e 1975. As tentativas de controlo do aparelho de Estado por parte do PCP (IV Governo) e por parte do PS (VI Governo), que existiram efectivamente, não têm nenhuma ligação com a democracia que vigorava nas empresas e nas fábricas e que foi cada vez maior ao longo de 1975, colocando sucessivamente em causa medidas de Governos que jamais foram eleitos. Estado e revolução não andaram de mãos dadas. Essa é a tese central do meu livro. A revolução e as suas conquistas não dependiam do controlo do aparelho de Estado por parte do PCP ou do PS, mas da criação de um poder alternativo na base da sociedade: trabalho, bairros de habitação e quartéis.

Aquilo que começou a 25 de Abril como um golpe de Estado foi a semente de uma revolução social (que imprime mudanças nas relações de produção), encetada como uma revolução política democrática (que muda o regime político). Esta revolução democrática não esperou sequer pelas eleições para a Constituinte a que se refere António Araújo: em poucos dias ou semanas, foi quase totalmente desmantelado o regime político da ditadura e substituído por um regime democrático. Foi a última revolução europeia a colocar em causa a propriedade privada dos meios de produção. Isso resultou na transferência, segundo dados oficiais, de 18% do rendimento do capital para o trabalho, o que permitiu o direito ao trabalho, salários acima da reprodução biológica (acima do “trabalhar para sobreviver”), acesso igualitário e universal à educação, à saúde e à segurança social.

Ao contrário de António Araújo, não uso o conceito impreciso de elites, mas o de classes sociais, das relações entre classe sociais e fracções de classes (as classes sociais não são homogéneas, estamos a falar de sociedades complexas, urbanizadas, industrializadas...) e suas representações políticas (partidos, igreja, MFA, etc.). É aí que encontramos uma explicação sólida para o desenrolar da revolução; por exemplo, a queda do IV Governo, em Julho de 1974, não tem como razão o caso República (esse é um epifenómeno), mas antes o desenrolar do controlo operário e da dualidade de poderes a nível local (comissões de moradores) que se consolida a partir de Fevereiro de 1975 e que torna impossível estabilizar o país com a forma política frentista (coligação) que tinha dominado os governos até aí.

António Araújo diz encontrar uma contradição na minha análise entre um Estado que não colapsou e a maior crise de Estado na Europa. Não há qualquer contradição porque são dois conceitos distintos. Há uma enorme crise do Estado, mas este não colapsa, nomeadamente porque os poderes paralelos que se criam durante a revolução nunca chegam a desenvolver-se e a coordenar-se nacionalmente para serem uma alternativa viável de poder — essa é uma das explicações para a facilidade com que a direita faz o golpe de 25 de Novembro de 1975. E as nacionalizações são justamente parte contraditória desse processo — o controlo operário na banca e o risco de que esses capitais ficassem sob poder dos trabalhadores leva o Estado a impor a sua nacionalização. Esta medida provocou largos debates na sociedade entre quem defendia que as nacionalizações representavam o avanço da revolução (PCP) e quem defendia que os bancos deviam estar sob controlo dos trabalhadores (não só os partidos de esquerda radical, o próprio João Martins Pereira, num documento que elabora para a Secretaria de Estado da Indústria). De facto, e não em palavras, significaram a preservação dos capitais sob a ordem capitalista, protegidos pelo Estado. Não há uma crise geral de Estado quando este mantém controlo sobre os capitais (o investimento), mas esta foi a maior crise de Estado na Europa do pós-guerra porque nem na França de 1968, na Grécia de 1974 ou na Espanha de 1976 a dualidade de poderes foi tão longe como no Portugal de 1975.

A derrota da revolução começa a partir de Novembro de 1975 com a imposição da “disciplina”, isto é, da hierarquia, nos quartéis, mas consolida-se através de um processo de “contrarrevolução democrática” (teoria da “transição democrática”, segundo a politologia de inspiração liberal), estratégia que irá ser aplicada na Espanha franquista e depois em toda a América Latina nos anos 80. Portugal é o primeiro exemplo de sucesso de uma revolução derrotada com a instauração de um regime de democracia representativa que, para se impor, teve de pôr fim à democracia de base, nomeadamente nos quartéis, nas fábricas, nas empresas, nas escolas e nos bairros.

António Araújo também me critica por “menosprezar” aquilo que, na sua opinião foi “um dos maiores feitos dos militares de Abril”, a “imagem icónica dos cravos nas espingardas”, isto graças à minha suposta enfâse na conflitualidade, e de ligar a revolução na metrópole aos “13 anos de horror nas colónias”. A imagem dos cravos nas espingardas e o facto de quase não ter havido mortos na metrópole em 25 de Abril de 1974 são-me simpáticos (houve quatro mortos sob as balas da polícia política, parece que 16 ao longo de 19 meses). Mas o MFA não derrubou a ditadura com cravos. Foi com tropas e carros de combate na rua. Uma revolução é conflito. A ligação entre os 13 anos de guerra nas colónias e o 25 de Abril é um facto crucial.

Finalmente, não posso deixar de referir que mesmo um curto artigo de opinião não pode assentar numa leitura aligeirada. Metade do espaço do artigo de António Araújo revela erros crassos de leitura. Começa por criticar a ausência de obras no livro que são por mim amplamente citadas (John Hammond); refere que termino o livro defendendo o pacto social, quando termino com o contrário; cortando parte de uma frase, sugere que atribuo a Salgueiro Maia intenções “repressivas” quando tenta tirar a população do Quartel do Carmo para a proteger temendo confrontos, quando o que eu trato de enfatizar é a “teimosia” das pessoas em permanecerem na rua apesar dos apelos do MFA. Começa aqui a revolução, muito para além do golpe de Estado.

Hoje esse passado revolucionário — quando os mais pobres, mais frágeis, quantas vezes analfabetos, ousaram agarrar a vida nas mãos — é uma espécie de pesadelo histórico das actuais classes dirigentes portuguesas. Tanto é assim que mantém-se a insistência de, nos 40 anos da revolução, celebrar-se apenas o 25 de Abril, esquecendo que esse dia foi o primeiro dos 19 meses historicamente mais surpreendentes da história de Portugal. E que Portugal foi, ao lado do Vietname, o país mais acompanhado pela imprensa internacional de então, porque as imagens das pessoas dos bairros de barracas sorrindo de braços abertos ao lado de jovens militares barbudos e alegres encheu de esperança os povos de Espanha, Grécia, Brasil... E de júbilo a maioria dos que aqui viviam. Uma das características das fotos da revolução portuguesa, como a que ilustra a capa do livro, é que nelas as pessoas estão quase sempre a sorrir. Não por acaso, Chico Buarque cantou: “Sei que estás em festa, pá.”


 

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