Ser um mito, negando-o

E assim se adensou a imagem nebulosa que guardamos de Jandek como artista

Um texto crítico deve enquadrar e avaliar um objecto ou acontecimento artístico. Pode ajudar a dar-lhe sentido. Mas que sentido dar à estreia de Jandek em Portugal?

Que sentido tem um homem de idade e nomes incertos (ele cultiva o quase anonimato) entrar e sair de palco sem uma palavra, um gesto de reconhecimento? Que sentido tem passar uma hora e meia ao piano, aparentemente sem rumo, imperturbável face aos aplausos e ao crescente desconforto em parte da audiência?

Jandek é uma das figuras mais misteriosas da música popular (usamos a expressão em sentido lato), o músico "outsider" por excelência. Desde 1978 que opera sempre à margem das tradicionais instituições, editando dezenas de discos com apenas duas entrevistas pelo meio. A sua música, filha da folk e dos blues, mas difícil, estranha ou mesmo desafinada, e a aura de mistério geraram uma mitologia infindável em seu torno.

Só surgiu em palco em 2004 e, desde então, tem actuado com alguma regularidade, geralmente com músicos convidados. Em Serralves, porém, optou por tocar sozinho, apenas com piano, sem a voz sorumbática e a guitarra desalinhada que são a sua principal imagem de marca. O concerto fez-se de duas peças (a primeira com cerca de 30 minutos, a segunda com uma hora) não muito diferentes, por vezes a fazer lembrar a faixa título de "The Beginning", disco de 1999.

Pianista pouco ortodoxo, Jandek regressava constantemente a uma mesma frase melódica, não muito distante de Erik Satie (como em "Glasgow Monday", de 2006), mas logo tratava de destruir essa beleza melancólica e ordenada com ataques furiosos às notas mais graves (que geraram os momentos mais tempestuosos - e interessantes - da noite) e longas incursões dissonantes. Uma espécie de tratado sem palavras sobre a solidão e a tristeza (temas recorrentes na discografia do músico), com tudo o que de feio e absurdo esses estados emocionais podem envolver.

Em 2002, o blogue Ludic Log escrevia que nos álbuns de Jandek "a linguagem da criação é tão extraterrestre face aos termos da habitual crítica de música que nos deixa desnorteados sobre como julgá-los". O mesmo aconteceu em Serralves, o que não torna o concerto bom, mas ajuda a compreender o que se passou naquele palco.

Além disso, a "experiência Jandek" não se faz apenas da música. Tal como as capas dos discos e os outros escassos sinais comunicantes da sua obra, em Serralves, os longos silêncios antes de começar a tocar e depois de se ouvirem as últimas notas de cada peça e a forma quase obsessiva como lidou com o teclado do piano são mais um contributo para o adensar do mito e da imagem nebulosa que guardamos de Jandek como artista.

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