A salvação de Bill Callahan

Não há muitos discos por aí em que entremos de gatas e saiamos apoiados apenas nas patas traseiras. Extraordinário, senhor Callahan

O movimento traçado pela música de Bill Callahan ao longo de 17 anos é uma lenta elipse em direcção à normalidade possível, cujo ponto culminar é "Sometimes I Wish We Were an Eagle". O disco assinala o fim de uma recente e progressiva decantação de toda a provocação e violência que marcavam os primeiros disco de Callahan.

O milagre de "Sometimes I Wish We Were an Eagle" consiste em usar a favor de uma beleza simples mas exacta os elementos fundamentais que marcam a escrita de Callahan: usar um mínimo de recursos, assentes numa estrutura repetitiva à guitarra, com enorme economia vocal e palavras lapidares. Esta estrutura mantém-se desde o início, mas nessa altura Callahan procurava resultados diferentes.

Vejamos o que ele caminhou. A sua primeira canção-bandeira, "Your Wedding", está em "Julius Caeser" (1993) e foi editada sob o nome Smog, denominação que só abandonou há dois anos com "Woke on a Waleheart". Sob um manto de violoncelos lúgubres, o que parece ser um oboé a desenhar uma harmonia desagradável e uma guitarra desafinada, Callahan canta, com voz ébria, enquanto o ruído se acumula à sua volta: "I'm gonna be drunk, so drunk, at your wedding". Os riffs bluesy disfuncionais, as guitarras desafinadas e repetitivas tornaram-se a marca de água de Callahan, que nessa altura usava o ruído com abundância.

O mérito foi o de ser credível a enfiar-se na cabeça de gente colocada em fronteiras emocionais. A infância, por exemplo, era terrível: em "Battysphere" ("Wild Love", 1995) um miúdo quer ir para o fundo do mar e não se importa de ficar por lá; em "Cold Blooded Old Times" ("Knock Knock", 1999), um adulto recorda a infância e só encontra a separação dos pais quando era criança.

As mulheres também não foram fonte de alegria. Em "Be Hit" ("Wild Love") Callahan advogava a violência doméstica como método para evitar separações. Em "All your women things" ("Doctor Came At Dawn", 1996) um homem recorda uma mulher perdida e pergunta porque é só a conseguiu amar quando ela o deixou.

Essa distância face às emoções é abordada em "River Guard", extraordinária canção de "Knock Knock". Canta-se: "We are constantly on trial/ it's a way to be free". Aqui a consciência serve como forma de prisão e é esse o grande tema de Callahan. Essa reflexão sobre a consciência teve o seu epítome em "Rain On Lens", disco sufocante, de guitarras ásperas e voz cada vez mais seca, em que canta "The mind is always working out/ ways to see/ the things I shouldn't see" (em "Natural decline"). Em Callahan a consciência é castradora e o inconsciente é sabotador - vença quem vencer é a alegria que perde. A partir de "Supper" (2003) as canções procuram a beleza, a calmaria domina e aqui e ali nota-se uma procura de humanidade, que domina o tremendo "A River Ain't Too Much To Love" (2005). Se antes tínhamos a impressão de estar a assistir a uma inevitável tragédia pelo buraco da fechadura, agora Callahan abria-se para o exterior.

"Sometimes I Wish I Was an Eagle" é o primeiro grande disco em nome próprio. Abre com "Jim Cain", canção dedicada ao escritor "noir" James M Cain. Há um simples entrançado de guitarras enquanto cordas idílicas sobrevoam a voz quente de Callahan, que traça um paralelo entre a sua vida e a do escritor, cantando "I started out in search of ordinary things/ how much of a tree bends in the wind", para chegar aqui: "I used to be darker/ then I got lighter/ then I got dark again".

"Jim Cain" serve de programa ao disco, um conjunto de canções meticulosamente desenhadas, assentes nos jogos harmónicos entre as guitarras, com as melodias de voz (sempre seca, sempre controlada) à frente, enquanto em fundo cortinas de cordas e sopros acentuam e pontuam o que se canta. Todo o disco assenta numa premissa: a aceitação dos erros passados, a dissolução do ego num bem maior. Isto poderia corresponder a filosofia new-age, mas Callahan tem demasiados filtros para ser auto-complacente.

Em "Eid Ma Clack Shaw" uma brisa de cordas varre o minimalismo do piano enquanto nos bastidores sopros trabalham na beleza. Em "The wind and the dove" estamos de volta aos entraçados de guitarra com debruado de cordas e sopros evocativos. Numa pequena ponte em ascensão, prenuncia-se uma epifania que se concretiza no refrão. As qualidades evocativas das cordas atingem o zénite em "Rococo Zephiyr". Callahan canta: "I used to be sort of blind/ Now I can sort of see" e o génio está naquele "sort of". "Too many birds" é canção de fogueira, inapelavelmente imediata, com órgão a saltitar no refrão. "My friend" talvez seja a grande canção do disco: "We share a common dream/ To destroy what will harm other men/ My friend" e Callahan canta aquele "my friend" como se fosse um anti-herói de série B a fazer uma ameaça, dando uma intensidade teatral inusitada à canção. Até ao fim ainda há um disparate ambiental ("Invocation of Ratiotination") e duas tremendas canções, "All thoughts are prey to some beats" e "Faith/Void", com Callahan a cantar "It's time to put God away".

A salvação costuma ser esteticamente repreensível, mas Callahan consegue torná-la comovente. Não há muitos discos por aí em que entremos de gatas e saiamos apoiados apenas nas patas traseiras. Extraordinário, senhor Callahan, extraoridnário.

Sugerir correcção
Comentar