Os Vaselines para além dos Nirvana

"Enter the Vaselines" vale a pena por aquilo que já conhecíamos, mas isso é tremendamente recompensador

Tudo muito curto, muito compactado. Canções de dois, três minutos. Dois EPs e um álbum como obra. Isto são os Vaselines e o pouco que fizeram serviria para encher várias carreiras. Primeiro, porque a química entre Eugene Kelly e Frances McKee confere à música uma personalidade única: ele, "barretteano" no despojamento e "reediano" pelo escárnio; ela, de voz a meio passo de desafinar, frágil mas límpida, cantando em tom de inocência que as letras desmentem. Depois, porque em curtos quatro anos, coube neles rock'n'roll sónico de guitarras descontroladas e percussão marcial, folk de câmara de uma luminosidade tocante ou cítaras, fora de época, que caíam maravilhosamente bem entre aquelas guitarras acústicas e vozes harmonizadas com desdém."Enter The Vaselines" não deixa nada de fora.

Recupera "The Way of The Vaselines", compilação de 1992 que agrupava todo o material gravado pela banda, e acrescenta-lhe um CD bónus com três demos e dois concertos - um em Bristol, com Eugene e Frances (mal) acompanhados por ritmo pré-gravado, outro em Londres, quando os Vaselines já tinham secção rítmica e eram banda de quatro elementos.

O CD bónus pouco tem de significativo. O primeiro concerto é uma caricatura "d.i.y" de vozes desafinadas, dinâmica inexistente e gritos de excitação acriançados quando Eugene apresenta "Son of a gun" como "Up your ass". O segundo, sendo competente - é nítida a evolução da banda em palco, com acompanhamento real -, nunca se ergue acima de curiosidade histórica. Ou seja, "Enter The Vaselines" vale a pena por aquilo que já conhecíamos. Mas isso, asseguramos, é tremendamente recompensador.

Porque "Son of a gun" é a fusão Byrds-Velvet Underground que nunca imagináramos, porque a delirante versão de "You think you're a man" é um épico cómico de guitarras estrepitosas e provocará, citando Nel Monteiro, inimagináveis "broncas na discoteca", e porque, resumindo, os Vaselines, quer peguem em sujidade "reediana" para cantar felicidade adolescente, quer se dediquem à electrocussão do garage-rock com bateria tonitruante ou visões distorcidas, narcóticas do blues, transportam algo de vital para sua música: uma ideia de descomprometimento, a sensação de que esta música os representava a eles e à música que os formara de uma forma irrepetível. Isso pressente-se tanto na belíssima "Jesus don't want me for a sunbeam", folk-rock pungente dominado pela voz de Eugene, de uma justiça quase cinematográfica, quanto numa "Lovecraft" que é, à uma, a "Tomorrow never knows" e a "Sister Ray" dos Vaselines - guitarra acústica atacada com ferocidade, efeitos perturbadores em loop, as vozes prolongando o final das frases de modo encantatório e, algures, uma cítara a levitar sobre tudo isto.

Decididamente, não era preciso nada de novo. Regressar à música deste breve cometa de inspirada cultura pop é mais do que suficiente. Descobri-los, imaginamos, será ainda mais revelador.

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