Como se fosse a primeira vez

Gil Scott-Heron não estava esquecido, estava perdido. Se este álbum não constituir a sua salvação, poderá ser pelo menos a nossa

Não estava esquecido, porque a sua música, as suas palavras e o seu legado não se haviam desperdiçado, tendo sido transmitidos a gente tão diversa como Carl Hancock Rux, Ursula Rucker, Saul Williams, Rich Medina, Mike Ladd ou The Streets. Ou seja, a praticantes de música em que a poesia cantada é fundamental.

Mais do que esquecido, parecia irremediavelmente perdido. O seu último álbum de originais, o injustamente menosprezado "Spirits", datava de 1994 e a primeira década do século XXI foi vivida por ele aos tropeções, entre prisões e vícios privados. A sua ressurreição deve-se, em grande parte, a Richard Russell, o produtor inglês também responsável pela XL Recordings. Foi ele que percebeu que um retorno só faria sentido se mudasse (não se acomodando na prateleira da "consciência negra" com sonoridade soul-funk-jazz em fundo) sem perder as características que fazem dele uma figura única: voz profunda, modelada pela existência tão lúcida quanto embriagada, e aquela maneira distendida mas firme de fazer sair as palavras.

O que tem para dizer também é diferente. Claro, o mundo exterior não lhe escapa, mas é um Heron mais introspectivo, interrogando o seu percurso, os seus demónios, a sua família, que se faz ouvir. O mérito de Russell, mais uma vez, foi perceber que aquela voz precisava de espaço para se exprimir.

E é isso que se faz ouvir, uma arquitectura sónica que dá amplitude para aquela voz se afirmar, assente numa massa electrónica compacta, com sons vigorosos e ambientes nocturnos, que parece ter sido aspirada das produções mais marcadas por linguagens como o dubstep (de Burial aos The xx), como em "Your soul and mine", "Where the nigh go" ou "Running".

Há também impulsos desfigurados de hip-hop ("Me and the devil") ou um piano ("I'll take care of you") e uma guitarra acústica ("I'm new here"), marcando o compasso de canções mais clássicas. Em variações digitais modernistas ou em incursões mais tradicionais, há um mundo habitado por Heron como se fosse a primeira vez. "I'm New Here" não é só o seu regresso. Fica sempre bem nos jornais: "velho cantor de culto de volta". Isto é outra coisa. Mais arriscada. Muito mais bela.

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