O México 86 vai ser tão bom

Os anos 80 de Tiago Guillul são um tempo que nunca existiu, a não ser agora

Para depressão, já basta o que basta. A crise, os festejos benfiquistas, um papa a parar um país chamado Portugal, e um vulcão em erupção a criar caos transcontinental. A esperança não está no futuro, está no passado, que tudo sublima em boas memórias. Pelo menos, é o que intuímos quando ouvimos Tiago Guillul, regressado aos álbuns com "V", cantar, logo à segunda canção, "dizem p'rá frente é que é, mas sabe-me a 93" - e depois habitar a canção de pranchas de surf e skate e dos "santos de calções do México 86 World Cup".

"V" não é, como era "IV", um disco de "panque roque lo fi". É a encenação possível de um tempo. Tudo nele parece tresandar a anos 80: os sintetizadores, as guitarras hard-rock, os "duetos-duelos" de voz, o saxofone que irrompe algures em canção de amor, o rock enquanto trote de cavalaria que os Survivor imortalizaram em "Eye of the tiger". Acontece que isso é apenas o verniz que cobre esta música - que é, não nos enganemos, verniz berrante, tão berrante quanto o tipo de letra, Judas Priest rosa-choque, que adorna a capa do álbum.

Estes anos 80 que aqui se romanceiam, e esse é o grande talento de Guillul em "V", são pessoalíssima construção de um lapso temporal: algo que nunca existiu antes porque, apesar das recordações estivais da "Praia Verde", apesar do México 86 e do Variações (tinha de aparecer, claro), só hoje podia nascer assim.

Aqui, a nostalgia é resistência, a diversão é um plano ético. Por isso, há berraria e euforia tresloucada na ligeireza pop de "Sete voltas para a muralha cair" (cortesia de Joaquim Albergaria), há kuduro estilizado na melhor canção do álbum, "A febre em 1993", há um dueto com Rui Reininho (é aqui que assistimos ao "dueto-duelo") que passa da rockalhada amiga da rádio a um exótico abraço de tropicalismo ("Nabucodonosor!", exultam eles), e um "Barreiro rock city" a meias com o barreirense Nick Nicotine, que ouvimos como encenação da E Street Band de Springsteen em garagem portuguesa.

Habilíssimo gestor de referências musicais e inspirado versejador pop, Guillul propõe a reocupação da algarvia Praia Verde ("e toda a classe média canta", repete-se em mantra), traz a imponência de um coro gospel para o bamboleio vagamente Paul Simon de "Roma e Avinhão" e, sempre aberto à auto-ironia, exclama "o meu carcereiro é meigo e não se importa com o som do saxofone" imediatamente antes de, voilá, sermos acariciados por um solo do instrumento mais ameaçador da "coolness" rock'n'roll.

"V", aparentemente tão diferente do seu antecessor, tem a marca e a inteligência criativa de Guillul. Finge ignorar o seu tempo, apenas para se inscrever nele de forma mais declarada.

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