Tudo pela canção

Nem revolução nem subversão, tudo pela canção. Mais de uma mão cheia delas são de excepção, três eram dispensáveis

Tentar situar ou definir esteticamente um disco dos Pop Dell'Arte, qualquer disco dos Pop Dell'Arte, no próprio "corpus" da banda é um exercício ingrato, porque a obra é uma manta de retalhos incompreensível pelos padrões habituais.

Nos Pop Dell'Arte um terceiro disco de originais ("Sex Symbol", 1995) pode distar doze anos do anterior disco de estúdio e um EP como "Ilogik Plastik" (1989) pode conter uma pérola como "O amor é... um gajo estranho" e ser tão fundamental quanto o primeiro e mítico disco, "Free Pop" (1987).

Estamos perante uma banda errática, que deita trunfos fora, que parece quase sabotar as suas possibilidades de êxito (e isto mesmo tendo em conta que muitas das canções dos EPs e singles acabaram recolhidas no magistral "Arriba! Avanti! Pop Dell' Arte"). Além disso, esteticamente os Pop Dell'Arte sempre pareceram tão propensos a estilhaçar a new-wave e todas as regras da pop convencional como a fazer refrões (notáveis em "Sex Symbol").

O que leva à questão: o que pode significar hoje um novo álbum dos Pop Dell'Arte? Não havia música nova desde 2002, com o belíssimo EP "So Goodnight", e para encontrar o anterior álbum da discografia é preciso recuar ao magistral "Sex Symbol". Temos que lidar com a questão de outra forma: cada objecto assinado pelos Pop Dell'Arte deve ser visto como um objecto em si mesmo, esquecendo o que está para trás, não procurando incluí-lo em nada, excepto no seu próprio mundo. Ou pelo menos era assim até agora, porque "Contra Mundum" tem, em metade do disco, marcas estéticas que o aproximam de "Free Pop", em particular nessa espécie de desconstrução da new-wave que os marcou no início. Isso é notório na estupenda canção de abertura, "Ritual Transdisco", em que um beat semi-disco suporta a refrega entre as malhas de teclas e de guitarra (tão bom quanto qualquer coisa dos LCD Soundsystem), é notório em "Eastern Streets", em que uma estupenda figura de guitarra se apoia num beat que lembra os Konk, é notório em "Mr Sorry", percorrido pela sombra das Delta 5, é notório em "Electric G", electro negro percorrido pela sombra de uns tais Pop Dell'Arte. Isto é um território que lhes pertence, uma espécie de autofagia pop em que linhas de baixo repetitivas, percussões em tempos inusitados e guitarras angulares colidem de modo a que um manco com prisão de ventre dance com a graciosidade de uma Ruth Bryden aristocrata.

Mas "Contra-Mundum" não é só isso. Há por ali psicadelismos negros ("Wild'n'chic"), homenagens a Kurt Weill ("My rat ta-ta"), avarias que lembram ou os Radiohead de "Kid A" ou os Pop Dell'Arte de "All you need is money" ("Slave for sale") ou o regresso ao universo onírico de "So Goodnight" em "La nostra feroche volontà d'amore".

O pior do disco, o dispensável, está nas faixas melancólicas, dominadas pela presença das teclas ("Diary of a soldier" ou "Har megido's lullaby") ou na faixa a capella fadista "Noite de chuva em campo de Ourique". Sabemos o que vão dizer por aí: que "Contra Mundum" é uma súmula dos caminhos percorridos ou um regresso a "Free Pop" em que o "free" já não soa a novo. Mas nunca foi importante o "free" ou o "novo". Importantes são as canções.

E "Contra Mundum" tem mais de uma mão cheia delas que entram para o canône dos Pop Dell'Arte. Digamos assim: enquanto o melómano adolescente anda aos pulos pela nova cena estranha que apareceu aqui no bairro recusando tudo o resto, o melómano batido borrifa-se para a revolução e a subversão e quer é a canção. Portanto, quando vos disserem que isto é igual a "Free Pop" (o que é mentira) respondam que John Ford fez sempre o mesmo filme e que Philip Roth fez sempre o mesmo livro. Quanto a João Peste: veja se volta antes dos nossos netos morrerem, ok?

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