Kelis com os calores

Enquanto a pop paredes-meias com o R&B tem andado numa competição desabrida para ver quem é mais explícito, Kelis marimba-se para isso e assina um disco em que a temperatura está sempre no vermelho sem ter de arfar repetidamente

“Seems like no one is surprising anymore / it’s not that I’m ungrateful / I’m just a little bored”. Vamos nos segundos iniciais do quarto tema de Food, Floyd, e a rouquidão de Kelis é agora uma coisa vaporosa, dengosa, a caminho de um refrão de uma soul mascarada de pop, pouco espectaculosa, enrolada em sopros decalcados do melhor livro de estilo dos anos 70. Kelis Rogers pode queixar-se quanto quiser de já não haver quem surpreenda, pode até gritá-lo como fazia nos tempos irados de“I hate you so much right now” (Caught Out There). E por mais que o faça e repita, não há como não receber com indisfarçável espanto e alívio este Food.

O último sinal de vida que se conhecia na turbulenta existência artística de Kelis era pouco animador. Depois de ouvir o anterior Flesh Tone (o primeiro álbum depois de se zangar com a indústria musical e se dedicar à gastronomia durante quatro anos), imaginava-se que poderia ser preciso mais do que um desfibrilador e uma intervenção de emergência para salvar a cantora de se afogar na sua crescente irrelevância. Flesh Tone, na sua quadrada abordagem à pop dançável – nem o habitual r&b da cantora parecia ter sido convidado para a festa – era coisa para levar ao desespero qualquer ouvinte que tivesse passado por Caught Out There ou Milkshake. Parecia, verdadeiramente, um teste à paciência.

Daí que fosse muito pouco óbvia esta troca de produtores, atirando porta fora David Guetta, um dos responsáveis pelo tom falhado de Flesh Tone, e entregando os comandos a Dave Sitek, o homem com mãos de ouro dos TV on the Radio cujos créditos de produtor têm andado por outras paragens. Sitek, inteligentemente, elimina de uma assentada as falsas modernices europeias e oferece a Kelis o álbum mais clássico da sua carreira, deliciosamente soul, gospel e blues, sem deixar de cantar para o mundo pop.

Enquanto a pop paredes-meias com o R&B tem andado numa sofreguidão sexual, numa competição desabrida para ver quem consegue ser mais explícito no espaço de uma canção, Kelis marimba-se para esse campeonato e assina um disco em que a temperatura está sempre no vermelho sem ter de arfar repetidamente para cima do microfone. O arranque ao som de Breakfast e Jerk Ribs é demoníaco que chegue, evocativo de Lauryn Hill ou Erykah Badu, inspirado certamente pela chegada vigorosa de Janelle Monáe à formulação de James Brown no feminino, mas com a gigantesca vantagem de ter Sitek nos comandos. O homem sabe quanto baste de música negra, mas não tudo. E aquilo que lhe escapa é o que faz com que Floyd – lá voltamos – junte sopros arrastados como navios a despedir-se do cais a um arranjo que, de resto, poderia caber a Henry Mancini. Nem ponta de cliché por aqui, nem uma canção abaixo do soberbo.

E depois há esta coisa de Kelis repetir “I need ice cold water” no tórrido número funk Friday Fish Fry. Kelis está com os calores. Não a acudam, por favor.

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