Música de mulheres

Para desenjoar das divas perfeitas e penteadas do R&B, ficam aqui dois discos de escritoras de canções que passaram despercebidos. Where Shine New Lights, de Tara Jane O´Neil, e Boy, de Carla Bozulich. Está na altura de os lembrar, de os escutar

Uma das obrigações do crítico de música pop é manter-se informado das novidades, das tendências musicais mais recentes, dos estreantes promissores. É-lhe imperdoável qualquer desactualização e, na maioria dos casos, o conhecimento não chega. Tem que existir um certo envolvimento, sinais de entusiasmo sincero. Não importa se tal disco ou tal banda se tornem, no espaço de um ano, irrelevantes. Esta é a lógica da pop: excitação em torno da novidade, esquecimento antes da obsolescência. Bom, dito isto, é lamentável a indiferença a que foram votados, por alguma imprensa musical, Where Shine New Lights, de Tara Jane O’Neil, e Boy, de Carla Bozulich. São dois discos notáveis e desprendidos das considerações ou opiniões que hoje dominam a crítica. Só respondem por uma história: aquela em que se fizeram. Tara Jane O’Neil tem uma carreira de 12 anos. Ajudou a fundar os Rodan, banda que partilhou os palcos de Kentucky com os Slint, esteve envolvida na cena musical de Portland e é uma artista plástica (pinta e desenha). Não vale a pena elencar as bandas e os músicos com que colaborou; o universo desta nativa de Chicago é o do indie-rock, não a categoria genérica, esvaziada de memória, mas um repertório de referências que remonta a décadas passadas. Where Shine New Lights é talvez o disco que mais claramente enuncia essa condição. Artesanal, multiforme, inquieto, tem na canção um esteio. Arranca com Welcome, melopeia dominada pela voz antes de se encharcar na distorção cadente de Wordless in Woods. Depois, passado um pequeno interlúdio (e há muitos neste disco), vai desvelando filiações: a solenidade dos Galaxie 500 e dos Low, a dormência dos Spacemen 3, a leveza inquieta das vozes e das melodias dos girls group dos anos 60. Mas não há pressa ou esperteza nesse gesto. Tara Jana O’Neil abraça os sons do xilofone, os acordes das guitarras, a vibração do feedback, com uma intuição onde se sedimentam audições, experiências, histórias. Por isso, consegue saltar, com elegância, de uma canção “conservadora” (a belíssima The Lull the Going) para explorações sóbrias do ruído e o drone (ouça-se “Below Below as Above”). E tudo soa equilibrado, proporcionado. Fica aqui uma pequena nota: pela proximidade estética com Where Shine New Lights, é importante recordar os The Goslings e Gowns, bandas americanas entretanto extintas, que exactamente experimentavam com a canção sem a sacrificar.

O mundo de Carla Bozulich é diferente do mundo de Tara Jane O’Neil. A ex-Geraldine Fibbers é uma sobrevivente discreta do underground musical dos anos 1980, o que logo à partida lhe garante a indiferença de muito boa gente: anacronismo por anacronismo, antes as fashionables PJ Harvey ou Anna Calvi. Bozulich de facto não é uma autora fácil e por duas razões. A primeira prende-se com a recusa aparente em facilitar a apropriação (pelos outros) da música que faz. Não canta como deve ser, recita, declama, chora. Sucedem-se as inflexões de tom (na fabulosa Don’t Follow Me, por exemplo), pausas repetidas, rimas cortadas. A sensação é a de que a guitarrista/compositora deambula, tropeça, cai sobre as suas canções. A segunda razão traduz-se nos sons. Se Boy constitui par amoroso é certamente com From Her To Eternity, Evol ou Bone Machine. Tem a mesma urgência, as mesmas imperfeições, uma graça semelhante. Muito por causa da aparição inesperada e certeira de cada instrumento, de cada sonoridade. Da percussão jazzy às descargas de feedback, passando pelos riffs fabulosos de What Is It Baby nada se escuta em Boy que seja acessório ou decorativo. Tudo é necessário neste disco onde alguém canta “There ain’t no grave that can hold me down”.

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