"Surround" do século XVII na Sé de Lisboa

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Marco Mencoboni e o seu grupo Cantar Lontano interpretam na Sé de Lisboa, 5ª feira, as "Vésperas" de Monteverdi.

Em 1991, enquanto fazia pesquisa sobre a música de Monteverdi e dos seus contemporâneos na Biblioteca Musical de Bolonha, Marco Mencoboni teve uma revelação que mudou a sua vida. Numa preciosa edição dos "Sacri Concentus", do compositor Ignazio Donati (c.1575-1638), encontrou uma explicação detalhada da técnica do "cantar lontano" (que significa cantar à distância), usada na música sacra italiana dos finais do século XVI e inícios do século XVII.

A prática da policoralidade, jogando com a espacialização sonora decorrente da disposição de coros em diferentes pontos da igreja, era conhecida, mas o uso de solistas, que cantavam por vezes a mais de 25 metros de distância e envolviam a assistência com sons vindos de vários pontos numa espécie de "surround" seiscentista, era uma novidade.

Cravista, organista e maestro, o italiano Marco Mencoboni passou a direccionar a sua carreira para a exploração desta técnica. Antigo aluno de Leonhardt e Koopmann, criou os agrupamentos Sacro e Profano e Cantar Lontano, uma etiqueta discográfica (E Lucevan le Stell") e o festival Cantar Lontano em Ancona, na região das Marcas (Marche), em Itália. Mais recentemente, a experiência onírica de uma ouvinte inspirou o perfume "Cantar Lontano" e o realizador Alberto Momo fez o documentário "Un canto lontano", apresentado no último Festival de Veneza.

Mencoboni participou em 1989 como organista no memorável concerto no Mosteiro dos Jerónimos dirigido por Jordi Savall, e inserido nos saudosos Concertos Em Órbita, com as "Vésperas da Beata Virgem", de Monteverdi. Depois disso, nunca mais actuou em Portugal embora tenha regressado várias vezes a Lisboa, numa das últimas para gravar com Luís Miguel Cintra o relato poético que escreveu sobre a viagem para Nápoles do compositor espanhol Diego Ortiz, protagonista de um dos seus mais extraordinários trabalhos discográficos: "Ad Vesperas".

Mas no próximo dia 18 (às 21h30) será finalmente possível ouvir Mencoboni e o seu grupo Cantar Lontano, em Lisboa. A sua versão das Vésperas, de Monteverdi, será apresentada na Sé Patriarcal, tirando partido dos efeitos espaciais da policoralidade e recorrendo sempre que seja pertinente à técnica do "cantar lontano". O concerto insere-se na mini-temporada musical do Instituto Superior Técnico e terá acesso por convites que o público poderá levantar durante o dia do concerto na portaria do referido instituto universitário. Em formação alargada, o agrupamento conta com a participação de cantores tão importantes como Lia Serafini, Francesca Lombardi, Andrea Arrivabene, Gian Paolo Fagotto, Marco Scavazza ou Matteo Bellotto, entre outros.

"Nas duas principais igrejas em que Monteverdi trabalhou - as Basílicas de Santa Bárbara em Mântua e de São Marcos em Veneza - usava-se a técnica dos coros à distância", explica Marco Mencoboni ao Ípsilon. "Há poucos meses fui ver novamente a Igreja de Santa Bárbara e percebi imediatamente a concepção de Monteverdi a partir da arquitectura do templo, que foi claramente concebida a pensar na música. Tem uma sonoridade incrível, um órgão belíssimo e várias tribunas para os coros. Conhecendo a estrutura das Vésperas, pode imaginar-se que o 'Nisi Dominus', o 'Laudate pueri' e as restantes secções se faziam com os cantores dispostos de determinada maneira."

O grupo Cantar Lontano ainda não teve a oportunidade de actuar na igreja de Mântua, mas já apresentou as Vésperas no Festival de Ancona. "Tendo uma arquitectura diferente, a Sé de Lisboa permite fazer coisas que em Ancona não foram possíveis", referiu Mencoboni, que esteve há pouco tempo em Lisboa para analisar o local. "O ideal era ter as duas igrejas em conjunto para poder reconstituir exactamente a concepção inicial de Monteverdi. Por exemplo, quando ele diz que o 'Laudate pueri' é para oito vozes solistas 'nell'organo', depreende-se que os cantores ficavam na tribuna do órgão." Mas em Lisboa o órgão ficará no pavimento e não serão colocados muitos cantores nas galerias altas por razões de segurança. "Em contrapartida, temos um coro alto por cima da porta principal que é idêntico ao de Mântua. Trabalharemos mais em coro duplo, com um grupo de cantores no coro alto e outro em baixo, junto ao Altar Mor, ficando o público no meio."

Mas esta não é a única novidade. "Baseei-me nos manuscritos originais e na edição de 1610 pelo que haverá aspectos que soarão diferentes a quem conhece a obra feita da maneira mais usual. Nas primeiras transcrições algumas proporções de tempo foram anotadas de maneira incorrecta. Há, por exemplo, passagens que têm um ritmo ternário lento e que são habitualmente feitas num andamento muito rápido." O resultado foi "uma partitura mais teatral do que sacra, bastante influenciada pela ópera Orfeu", mas essa não é a concepção de Mencoboni. "Acredito que esta composição deve manter toda a sua força religiosa e profundidade mística."

Uma chuva de música

A prática da policoralidade e o "cantar lontano" continuam a ser fontes de descobertas constantes para Mencoboni, tanto em termos práticos como teóricos. O Festival de Ancona é frequentemente visitado por musicólogos que apresentam novos contributos. As relações entre a música e o espaço são também exploradas em sítios fora do comum, como os concertos em grutas das últimas edições, conforme se pode constatar nos vídeos disponíveis no site do grupo (www.cantarlontano.com).

Também os ouvintes relatam experiências de forte impacto emocional devido à imersão neste universo sonoro. Uma das histórias mais curiosas foi descrita numa carta que uma melómana entregou a Mencoboni no final de um concerto. "Contava a experiência que tinha tido quando fizemos as Vésperas de Ignazio Donati. Dizia que tinha saído da igreja muito emocionada e que nessa noite teve um sonho: a nossa música tinha saído da catedral de Ancona como uma nuvem colorida que pairava sobre a cidade. Depois começou a escurecer e a senhora sentiu gotas de chuva na fronte. Ela sabia que a nuvem continha música, portanto aquela era chuva de música, era música que se tinha tornado líquida! Recolheu-a num recipiente e recorda-se que era perfumada." Foi esta a inspiração para a criação do perfume Cantar Lontano, que Andrea Galeazzi fez a partir de plantas da região das Marcas.

Esta foi mais uma forma de promover o festival e a região. Mencoboni gosta de associar a música a outras linguagens e sempre que pode tira partido disso. Há muito que queria fazer um documentário sobre o grupo e por isso convidou o realizador Alberto Momo, que também virá a Lisboa filmar a experiência na Sé, a seguir a preparação de um concerto em França. "Filmou 13 horas mas depois de ver as imagens teve a consciência de que o resultado podia ser mais do que um documentário e criou um filme poético. Foi com surpresa que soubemos que ia ser apresentado em Veneza, em Março será projectado em Paris na feira Musicora e foi disponibilizado à REMA [Réseau Européen de Musique Ancienne]. Espero que também possa vir a ser visto em Portugal."

Mencoboni salienta que "é um filme que dá a conhecer a música antiga através de uma linguagem moderna." Intitulado "Un canto lontano" faz referência ao projecto em torno das Vésperas de Diego Ortiz, objecto de um CD na etiqueta Alpha. Para esta gravação Mencoboni trocou a sua etiqueta E lucevan le stelle pela casa discográfica francesa, com maior distribuição e mais meios técnicos, e associou-se à revista de arte FMR ("Franco Maria Ricci"), onde se reproduz na íntegra o quadro de onde foi tirado o pormenor que ilustra a capa do CD ("A Assumpção da Virgem", de Ippolito Borghese). Além de vários artigos sobre Ortiz, foi publicado também um relato ficcionado de Mencoboni sobre a viagem de Espanha para Nápoles de Ortiz. Este belíssimo texto foi depois traduzido em várias línguas e pode ouvir-se no site na leitura de Toni Servillo, Frank Proveddi, Olivia Williams, Max van Egmod e Luís Miguel Cintra.

"Já tinha visto Cintra em filmes de Manuel de Oliveira antes de o encontrar em Lisboa", contou Mencoboni. "Mostrou-se muito disponível para o nosso projecto, muito generoso. Se um dia se fizer uma versão portuguesa de "Un canto lontano", espero que ele lhe possa dar voz." Entretanto, este músico italiano de espírito inquieto prepara quatro novos discos (com música de Ortiz, Monteverdi, Ingegnieri, e Dufay) e o concerto da Sé de Lisboa, onde os sons do "cantar lontano" talvez se transformem numa nuvem feita de música.

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