A luta interna dos Low

Foto

No Sudoeste, os Low actuaram para umas escassas dezenas e Alan Sparhawk irritou-se consigo mesmo. Após quinze anos de silenciosa carreira, ele ainda é um homem com algo encravado na garganta.

Sábado, 8 de Agosto deste ano, 11 e tal da noite: os Faith No More estão no palco Sudoeste, o principal do Festival com o mesmo nome, com os amplificadores da guitarra no máximo do volume. O idiossincrático Mike Patton distribui o seu charme: num segundo urra, noutro aproxima-se do registo de uma cantora de ópera. Pelo meio fala um português caricato e goza com um tipo de máscara contra a gripe. Estão umas três dezenas de milhar de pessoas ali, para assistir ao regresso dos Faith No More. Levam com uma valente descarga eléctrica, ao contrário do que acontece a quem, lá pela meia-noite e tal, abdicando dos encores da banda de Patton, se dirigisse a um palco mais pequeno instalado uns valentes metros em frente ao palco Sudoeste.

À hora dos mencionados encores, nesse pequeno palco, havia apenas dois homens e uma mulher, um trio conhecido por Low: guitarra eléctrica, baixo, bateria de escovas. Cantam canções lentas em espiral, desenhando harmonias vocais, melodias que por vezes denotam uma herança musical cristã. Era difícil ouvir aquela música, quanto mais não fosse porque o som que vinha do palco era sabotado pelo som da tenda electrónica do festival. E era difícil ouvir aquela música porque aquele não era manifestamente o sítio: aquela música é demasiado mental, demasiado íntima para ser exposta numa tenda rodeada de barracas de cachorros, de hambúrgueres, com luzinhas a piscar e luzinhas a acender. Talvez por isso - ou porque ainda hoje, passados 15 anos desde a sua estreia com o hoje clássico "I Could Live In Hope", os Low ainda são um segredo por contar -, havia apenas umas escassas dezenas de pessoas a vê-los (porque ouvi-los era verdadeiramente difícil). Férreas e atentas, mas apenas umas dezenas.

A dada altura há um momento que não se espera em gente tão dada à mansidão, em gente tão gentil, em gente tão pouco dada a explosões: Alan Sparhawk, guitarrista, vocalista e compositor dos Low, irrita-se sobremaneira, tira a guitarra e prepara-se para arrear na dita quando Mimi Sparhawk, sua esposa, baterista e contraponto harmónico, larga as escovas e, num salto, segura-o, impedindo de dar cabo das seis cordas.

Mimi diz-nos, umas horas depois, sentada no camarim: "O Alan estava apenas frustrado. 'Sê gentil com a tua guitarra', foi o que eu lhe disse". Alan não estava ali. Tinha ido dar uma volta para arejar a cabeça. Eles não estavam minimamente satisfeitos com o concerto que tinham dado e não faziam nada para o esconder, muito menos para se desculpar. E tinham razões para isso: todos os cambiantes, toda a subtileza da música dos Low tinham-se perdido em favor dos restos de música que vinham da tenda electrónica. Aquele foi, salvo erro, o segundo concerto dos Low em Portugal (se estivermos errados façam o favor de corrigir), país em que têm um culto pequeno mas ferrenho. Não foi o concerto que eles queriam ter oferecido.

Sentada no sofá, Mimi parece ser uma mulher a pender para o alto, certamente a pender para o forte. O seu tom de voz mantém-se doce mesmo quando se lhe nota frustração: "Os festivais são difíceis para as bandas pequenas e calmas. Isso por vezes torna-se frustrante para nós". Alan Sparhawk entra no minúsculo camarim quando Mimi está a explicar que os Low "por norma não [fazem] festivais". Por segundos parece surpreso de nos ver ali. Não diz bom dia nem boa noite, e o rosto fecha-se. Não está a ser mal-educado: está nitidamente zangado com a vida. Mimi diz: "Mesmo usando mais electricidade, não conseguimos lutar com as outras bandas".

Ocorre-nos perguntar se, por causa de noites como aquela, um dia os Low - cuja discografia, com excepção de uma outra faixa em "Trust" (2002) e da electrónica esquisita de "Drums and Guns", alterna entre o quase parado e o tremendamente lento - vão, renegando o nome, tocar bem alto. Alan abana a cabeça. Aquele abanar de cabeça não parece ser só em sinal de negação, parece transportar uma boa dose da frustração de que a mulher fala. De repente, ele que tinha estado ali a revirar caricas e a passar o dedo pela toalha da mesa do "catering" como um rapaz insondavelmente perdido e alvo de alguma injustiça paterna, abre a boca. Não pondera cada palavra, nem tem o tom de voz doce da mulher. Aquilo sai-lhe como se já não pudesse ser sustido. "Se damos concertos nesta altura é porque as pessoas nos pedem de propósito. Não estamos em digressão nem a tentar promover um disco". E, acrescenta, referindo-se ao incidente com a guitarra no concerto, "não, não sei o que me deu. Foi apenas, foi apenas" - e a frase fica assim, a pairar no ar.

Coisas que fazem sentido

Quando os Low surgiram, em 1995, pareciam ter uma galáxia só sua. A música era composta por uma guitarra eléctrica, um baixo e bateria de escovas. Alan cantava, Mimi fazia harmonias e ambos pareciam estar fortemente medicados com ansiolíticos. As guitarras eram lentas e desenhavam belas e contemplativas linhas melódicas ao redor do baixo. Havia um tremendo espaço entre os instrumentos, o que dava à música do trio uma qualidade onírica, mesmo que por ali se sentisse sofrimento. Imediatamente uma minúscula porção dos ouvintes de música se tornou indefectível dos Low. Os fãs eram a aldeia gaulesa, os Low a poção mágica, e os romanos eram todo o mundo de melodias da rádio FM. As gentes que os começaram a seguir não têm apenas prazer com ou admiração pela música deles, antes uma devoção silenciosa que ocorre a um nível sub-atómico. "A nossa é música pessoal", diz Alan, "o que obriga a que se invista muito. Pelo que quem gosta se torna devoto".

O trabalho deles desde então é uma espécie de contínua variação sobre essa matriz, de alargamento contínuo das possibilidades a partir de uma base que sempre permaneceu intimamente ligada àqueles instrumentos. Aqui e ali pequenas diferenças assomavam. Sem procurar ser exaustivo, apontem-se algumas mudanças. "Secret Name" (99) juntava cordas e piano. Nesse mesmo ano lançavam um single, "Christmas", que pode muito bem ser uma das melhores canções de Natal alguma vez escritas: era dez vezes mais rápida que o habitual, bem mais saltitona do que o que lhes imaginamos e tinha chocalhos. "Things We Lost In The Fire" (2001) parecia resumir tudo o que tinham feito.

Mas quando pensávamos que já seria difícil aos Low manter uma unidade e mesmo assim mudar, veio "The Great Destroyer" (2005), que adicionava muito mais electricidade e alguma electrónica, aumentando o volume e as texturas das canções. "Drums and Guns" (2007) prolongava estas experiências de forma mais radical. Mimi: "Inicialmente o plano era tocarmos baixo, como reacção a toda a música barulhenta que havia. Agora não temos um plano. Mas também já não reagimos, agimos". O "grande denominador comum" da banda ao longo dos anos, diz a baterista, "são as harmonias entre nós dois e isso tentamos deliberadamente manter e até melhorar, ser mais inventivos".

Perguntamos-lhes se, sendo religiosos, o que emana das suas canções está mais perto da religião ou do espírito. Mimi responde: "Nunca fomos pregadores". Retorquimos: mas há luta, ali. Apesar da calma, há ali convulsão interna. A reacção de Alan é curiosa: abre muito os olhos como quem diz que estamos a constatar o óbvio, ou então como quem admite que sim e preferia que houvesse menos. A reacção de Alan dá-se enquanto Mimi continuava a falar: "Connosco, se a canção for uma luta, é porque a luta é interna". Ela diz isto olhando para o marido, como que sabendo que no fundo estamos a falar sobre ele, como se ele não estivesse ali. Vê a reacção do marido e acrescenta: "E há luta". E aqui assim, Alan abana a cabeça para cima e para baixo em sinal de profunda concordância.

Mimi continua a falar, dizendo que não dissecam as canções. "Às vezes o Alan não me diz o que as canções são", confessa - e Alan interrompe-a abruptamente para dizer: "Elas não são sobre nada. Vêm de um sítio. É isso". Alan surge como um homem com alguma coisa entalada na garganta. Dá pequenos passos pela sala de cabeça baixa, atento à conversa e comunica por pequenas explosões. Diz uma frase e volta ao silêncio. É nítido que nada nele diz respeito à pose de mini-estrela rock. "Eu pego na guitarra porque gosto, porque me faz sentir bem. Não penso nisso. Toco e saem coisas. Há ideias, pequenos fragmentos e de alguma forma, com sorte, os fragmentos encontram maneira de fazerem sentido juntos".

Há uma pergunta que há anos que queríamos fazer: se tocar juntos, cantar aquelas harmonias que parecem ter um intenso investimento pessoal e espiritual, os torna de alguma forma mais próximos que um casal normal. Mimi começar por acenar que sim, mas Alan toma a dianteira. "Nós conhecemo-nos desde os 14 anos, vimos da mesma comunidade, da mesma pequena sala de aula. Sempre tomámos o canto por garantido porque sempre esteve lá. A Mimi é boa a encontrar harmonias e eu canto. Talvez seja estranho, mas connosco funciona, mesmo como casal".

(Note-se que os Low são mórmones praticantes.)

A conversa - curta, porque eles precisavam de ir dormir - acaba com Mimi a revelar que os Low estão a escrever novas canções, que ainda não sabem que rumo lhes vão dar. Perguntamos se fazer um disco como "Drums and Guns" não poderá afastar os fãs de primeira hora e Alan tem uma resposta curiosa: "Não é um risco fazer as coisas assim porque ninguém nos conhece".

Eles até podem usar mais electricidade e alguma electrónica nos dias que correm, mas não parece haver risco de os Low se tornarem mais pop enquanto Alan Sparhawk continuar a ser um juiz tão severo de si próprio quanto o foi no dia oito de Agosto de 2009.

Sugerir correcção
Comentar